quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Memórias da última noite de paz

Um dia de 1994, estava em Jerusalém, depois de cobrir a eleição de Iasser Arafat como presidente da Autoridade Palestina.
Recebo um telefonema surpreendente: o rabino Henry Sobel, então figura-chave na Congregação Israelita Paulista, me convida para acompanhá-lo até a Faixa de Gaza, onde teria uma audiência com o "rais" (como os árabes designam seus líderes).
Topei na hora, claro. Arafat era, salvo erro de memória, o primeiro dirigente árabe eleito em pleito "fair and free" (justo e livre, o rótulo com que a comunidade internacional beatifica processos eleitorais). Entrevistá-lo justo naquele momento era o sonho de qualquer jornalista.
Fomos a Gaza, o rabino, eu e mais três jornalistas, dois judeus (um sul-africano, o outro de Nova York) e um português (do semanário "Expresso", a melhor publicação portuguesa).
Na passagem fronteiriça de Erez, os soldadinhos israelenses (pouco mais que meninos bem armados) recomendaram ao rabino que tirasse o quipá quando passasse para o outro lado. Os acompanhantes palestinos, ao contrário, disseram que não haveria nenhum problema se Sobel mantivesse o quipá, por mais que se trate de um indicativo explícito de que seu portador é judeu.
Arafat nos recebeu cordialmente. Comigo, então, foi de uma malandragem típica dos políticos que querem fazer um afago no interlocutor. Depois do beijo no rosto com que os árabes se saúdam, me disse: "Você é muito conhecido por aqui".
Resisti à tentação de perguntar se poderia encontrar a edição em árabe da Folha nas bancas de Gaza (única maneira de ser conhecido lá, certo?). Achei que ele não entenderia a ironia. Na verdade, eu era conhecido apenas por Ahmed Sobeh, que havia sido delegado no Brasil da OLP (Organização para a Libertação da Palestina).
Deve ter sido consultado pela segurança do líder quando chegou a lista dos convidados de Sobel e certamente me recomendou. Afinal, faço um descomunal esforço para tentar entender as duas partes desse interminável conflito e relatar com toda a honestidade o que vejo e sinto.
Terminada a entrevista, Sobel perguntou se Arafat topava participar da leitura de um salmo. Aceitou.
O rabino, então, leu em hebraico o salmo 37, dedicado às pessoas queridas que morrem, em homenagem a Yitzhak Rabin, o premiê israelense assassinado por judeus radicais e a quem Arafat se referia, sempre, como "parceiro" [para a paz].
O "rais" acompanhou a leitura, em inglês. "Amém", dissemos todos ao final, Arafat inclusive.
O líder palestino pediu para guardar o texto que diz: "Não se desencoraje com os que fazem o mal/ Porque eles vão desaparecer/ Confie no Senhor/ E Ele fará sua correção brilhar luminosamente como o sol do meio-dia./ Os maldosos perecerão/ Mas aqueles que servem o Senhor herdarão a Terra/ E se deliciarão na abundância de paz."
Pena que o salmo tenha sido tão pouco profético. Acho até que aquela noite em Gaza foi o último momento em que houve paz entre um judeu de quipá e um palestino de "kafiah", o turbante dos árabes em xadrez preto-e-branco.
A cena de 17 anos atrás me voltou agora à memória ao perceber a impossibilidade de que se repita algo parecido nos próximos muitos meses, anos talvez. Pena.

Clóvis Rossi

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