quinta-feira, 1 de setembro de 2011

E os humanos direitos?

"In silica, veritas". No silício, a verdade. Para o bem e para o mal, a internet funciona mais ou menos como o vinho. Ela suprime ou pelo menos enfraquece o superego do indivíduo, fazendo com que pessoas normalmente civilizadas escrevam verdadeiros elogios à barbárie. A coluna da Ombudsman e o Painel do Leitor da Folha deram testemunho desse efeito, registrando a reação de leitores que se indignaram com o fato de o jornal ter trazido na semana passada três matérias que retratavam a polícia paulista em situação pouco favorável, para não dizer criminosa mesmo.
Para esses leitores, a Folha, ao denunciar abusos das autoridades, prestava um favor à bandidagem. Até meu amigo e chefe, Vinicius Mota, perpetrou uma coluna na qual criticava a turma dos direitos humanos por ter sucumbido a uma "cantilena" ideológica que teria o objetivo de deslegitimar a ação da polícia e da Justiça como instrumentos de combate à delinquência.
Não concordo com ele. É claro que a ideologia perpassa, tempera e em muitos casos define o que dizemos e até pensamos, mas daí não se segue que todos os lados ideologicamente carregados sempre se equivalham e não existam princípios, como os direitos humanos, que devemos tentar tornar universais.
Comecemos circunscrevendo um pouco melhor o que sabemos sobre a genealogia do crime. Na forma caricatural, a esquerda sustentaria que são determinações sociais como a pobreza que forjam o bandido, o qual seria antes de tudo uma vítima, enquanto a direita enfatizaria o papel da responsabilidade individual, que deve prudentemente ser reforçada pela presença ostensiva de códigos de lei e, na dúvida, também policiais.
Caricaturas, porém, não nos levam muito longe. Todos os pesquisadores sérios propõem um quadro mais complexo, no qual condições sociais se combinam com fatores disposicionais, em boa medida genéticos, para explicar a criminalidade.
Estudos no campo da psicologia e da neurociência sugerem, por exemplo, que existem certos tipos de personalidade mais propensos a cometer crimes. A relação não é determinista, mas probabilística. O indivíduo que obtém uma pontuação alta nos testes para psicopatia não está fadado a assassinar os pais, devorar os vizinhos e disparar sua metralhadora contra criancinhas numa creche. Não obstante, encontraremos proporcionalmente mais pessoas com altos escores nas escalas de psicopatia nas cadeias do que na população geral. Evidentemente, tanto genes quanto condições ambientais (em especial as verificadas durante a gravidez e a primeira infância) contribuem para a formação de características relevantes para o crime, como o controle do impulso e a capacidade de empatia.
E a questão da responsabilidade individual é apenas uma parte da história. Há toda uma família de pesquisas no campo da psicologia social que mostra que mesmo pessoas sob todos os aspectos saudáveis e normais são capazes de verdadeiras barbaridades, desde que envolvidas pela situação. Falo aqui de experimentos como os de Philip Zimbardo e Stanley Milgram, que, por coincidência, descrevi na coluna da semana passada.
Até a demografia exerce um papel poderoso no comportamento dos índices de criminalidade. Como a esmagadora maioria dos delitos é perpetrada por homens na faixa dos 15 aos 29 anos, o simples envelhecimento da população já contribui bastante para a redução das taxas. É, em parte, o que explica a forte redução dos homicídios observada em São Paulo a partir de 1999.
O interessante aqui é que o peso de cada um dos fatores (genéticos, ambientais, sociais e demográficos) não é, para efeitos práticos, determinado por uma fórmula inscrita na natureza, mas sim pelo estado de nossos conhecimentos.
Mais ou menos até o século 18, o delinquente tinha parte com o demônio ou sabe-se lá o quê. A partir do Iluminismo, que se propunha a analisar o crime sob uma perspectiva racional e humanista, foi lentamente se impondo a concepção disposicional, segundo a qual somos seres dotados de livre-arbítrio, capazes pelo menos de resistir a tentações. Essa teoria ainda está por trás da maioria dos sistemas jurídicos do Ocidente, embora tenha sido temperada por acréscimos que deixam algum espaço para atenuantes sociais.
O problema com essas teorias é que elas não resistem a um escrutínio mais científico. Conhecemos hoje várias patologias que comprometem razoavelmente a capacidade do indivíduo de controlar seus impulsos. Para além de psicopatas, esquizofrênicos e pavios-curtos, existem certos tipos de demência e até tumores estrategicamente localizados que levam as pessoas a meter-se em encrencas legais. Pior ainda, esperamos encontrar mais dessas correlações à medida em que aprendemos mais sobre o funcionamento do cérebro. E isso nos coloca diante de uma questão difícil: será que tudo compreender é tudo perdoar?
Num nível ainda mais genérico, o próprio conceito de livre-arbítrio não encontra amparo na neurociência, o que, se não anula, pelo menos arranha os pressupostos clássicos das ciências jurídicas.
E não é apenas a noção de culpa que é questionada. Sabemos hoje que a memória, na qual se baseia o instituto do testemunho, ainda um dos mais utilizados para condenações, não vale meia sinapse. Embora acreditemos que nossas lembranças sejam registros mais ou menos fidedignos do que presenciamos, elas não passam de conexões entre neurônios que são reconstruídas e modificadas cada vez que as acessamos. Psicólogos não têm dificuldades para conceber e executar experimentos em que implantam memórias falsas na cabeça das pessoas, que são capazes de jurar que testemunharam o pseudofato.
Sabemos também que, se você deseja comprometer seriamente a capacidade de um indivíduo de desenvolver suas potencialidades e tornar-se útil para seus familiares e a sociedade, a melhor chance de lograr seu objetivo é mandá-lo para a cadeia. É uma piada de mau gosto apenas imaginar que encarcerar alguém por períodos prolongados num ambiente hostil e psicologicamente aniquilante possa de algum modo ajudá-lo a recuperar-se.
É por essas e outras que o neurocientista David Eagleman, autor de "Incognito", lançou um movimento em que conclama pesquisadores, juristas e filósofos a repensar o Direito penal, com base nos nossos novos conhecimentos sobre o funcionamento do cérebro. Não vou aqui me alongar nas propostas de Eagleman, mas, apenas para saciar a curiosidade do leitor, adianto que ele sugere que abandonemos as noções de culpa e punição e nos centremos em ideias mais pragmáticas, como impedir que o criminoso volte a delinquir e encontrar meios efetivos para promover a reabilitação.
Isso significa que devemos deixar de prender criminosos? Pessoalmente, acho que não. Pelo menos até que tenhamos erguido o edifício teórico vislumbrado por Eagleman, eu receio que não tenhamos muita alternativa que não a prisão, mas apenas para crimes violentos. Não me parece que faça muito sentido encarcerar punguistas, estelionatários, contrabandistas e até traficantes de drogas, que não representam uma ameaça física à sociedade. Para estes faz mais sentido ampliar o estoque de penas alternativas, reservando o xadrez para assassinos, sequestradores, estupradores e assaltantes. Executá-los e torturá-los não faz sentido em nenhuma hipótese. Seja como for, parece-me claro que instituições como a polícia e a Justiça criminal não devem ser defendidas de forma absoluta. Ao contrário, acredito, como Eagleman, que precisam ser criticadas e reformadas, para que se tornem mais efetivas na finalidade para a qual foram criadas, que é a de pacificar a sociedade preservando ao máximo as liberdades dos cidadãos.Isto posto, falta apenas dizer por que os direitos humanos são importantes. Embora muitos de nós tenham a tendência de idealizar o passado, maldizer o presente e temer pelo futuro, a verdade é que a humanidade nunca esteve tão bem em termos materiais e morais como hoje. Pode parecer provocação afirmar isso diante da fome na Somália, do genocídio em Darfur e logo após o século de Hitler, Mao e Stálin. Mas é um fato que a nossa espécie está se tornando menos violenta.
Em números absolutos, o século 20, com seus cerca de 100 milhões de massacrados, é o campeão, mas é preciso olhar para a série longa e fazendo as correções necessárias para compensar o crescimento populacional. Aqui, de acordo com dados e análises produzidos por autores como Lawrence Keeley e Stephen LeBlanc, diminuímos não apenas a frequência dos ataques a nossos vizinhos como também a percentagem das pessoas assassinadas em cada investida. Se as taxas de morticínio verificadas entre os "bons selvagens" fossem aplicadas ao século 20, o saldo de óbitos excederia facilmente os 2 bilhões.
E podemos acrescentar outros itens à lista de melhorias, como a virtual extinção da escravidão e do sacrifício humano. Também estão em baixa em praticamente todos os sistemas jurídicos do mundo a tortura e mutilações. A própria pena de morte, embora ainda esteja longe de acabar, já não é em nenhum lugar aplicada para delitos menores bem, talvez o Irã seja uma exceção.
Quem descreve bem o movimento é o filósofo Peter Singer, para o qual a humanidade vem ao longo da história expandindo seu círculo de solidariedade moral. Nos primórdios, o homem ligava apenas para si mesmo e, às vezes, para a sua família. Com o decorrer do tempo passou a preocupar-se também com seus vizinhos, compatriotas irmãos de fé e, por fim, com todo o gênero humano, incluindo, categorias que até hoje despertam alguma polêmica, como criminosos. Agora, alguns de nós começam a colocar bichos dentro do círculo, como o atestam organizações que militam pelos direitos dos animais, se é que a expressão faz algum sentido.
É por essas e outras que eu acho que dá para falar em progresso moral da humanidade, do qual a campanha pelos direitos humanos, em que pese um ou outro exagero, vem sendo um dos pilares. Não me parece que já estejamos prontos para dispensá-la.

Hélio Schwartsman

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