quinta-feira, 9 de junho de 2011

Uma defesa para Palocci

Na hora de explicar o inexplicável, eles são criativos. Para Palocci, foram as liquidações antecipadas de contratos; José Roberto Arruda recorreu aos panetones; Renan Calheiros fez bons negócios com vacas; o "mensalão" virou "recursos não contabilizados"; até o Collor bolou a famigerada Operação Uruguai. E a lista de desculpas pouco convincentes providenciadas por políticos à beira de um escândalo poderia ser ampliada quase indefinidamente, atingindo representantes de todos os partidos e tendências. O problema, ao contrário do que ainda crê uma certa esquerda romântica, não está na ideologia, mas na natureza humana.
Deixo para colegas mais tarimbados as necessárias cobranças morais e penais sobre o caso Palocci e me concentro na psicologia do erro.
Se o cérebro humano foi concebido por um Criador, então Ele precisa voltar para o cursinho do Senac. Uma descrição mais precisa das camadas evolutivas que compõem nossa mente passa por gambiarras e puxadinhos. Se são esses diferentes módulos ligados em rede que nos permitem experimentar a consciência e ter a sensação do livre-arbítrio, eles também nos deixam com uma série de manias, vieses e tendências que não são exatamente inocentes.
Já que estamos falando de política, analisemos, nos passos de Dan Gardner, autor de "Future Babble", um caso célebre envolvendo Hillary Clinton. Em 2008, quando disputava com Barack Obama a indicação do Partido Democrata para concorrer a Presidência, ela contou que, numa visita que fizera à Bósnia nos anos 90, teve de fugir dos tiros de franco-atiradores. Parecia uma excelente história. Só que o povo chato da imprensa conseguiu localizar os vídeos do evento a que ela se referiu e descobriu que a coisa mais emocionante que Hillary enfrentou aquele dia foi receber flores de uma garotinha. A narrativa da pré-candidata era indiscutivelmente falsa. E, como era de esperar, ela foi pintada como mentirosa para milhões e milhões de potenciais eleitores.
A pergunta que fica, então, é por quê? Hillary foi à Bósnia como primeira-dama dos EUA. Sabia que cada um de seus passos foi acompanhado por dezenas de cinegrafistas. Sabia também que, na campanha, cada uma de suas declarações seria metodicamente escrutinada pela mídia. A chance de ela ser desmentida, portanto, era próxima de 100%. Com tanto a perder e tão pouco a ganhar (quantos votos ela obteria se tudo fosse verdade?), por que inventou isso?
E a resposta é que ela provavelmente não inventou. Ou melhor, inventou, mas não necessariamente achava que inventou. Parte do problema é a memória. Sempre que a utilizamos, temos a sensação de estar consultando um registro fotográfico de cenas ou um meticuloso banco de dados. Essa é uma das peças que nossos cérebros nos pregam. Qualquer um que já tenha tentado guardar fotos ou filmes no computador sabe quanta memória isso consome. Apesar de termos bilhões de neurônios formando trilhões de conexões, não haveria espaço para armazenar toda uma vida na forma de imagens gravadas.
Na verdade, o que o cérebro guarda são registros hipertaquigráficos a partir dos quais nossa mente reconstrói o episódio cada vez que nos lembramos dele. Como não poderia deixar de ser, essa processo sofre distorções pelo que estamos sentindo ou pensando no momento em que acionamos a memória. Algumas lembranças permanecem estáveis por décadas, outras são sutilmente modificadas e há as que sofrem transformações profundas.
O que muito provavelmente aconteceu com Hillary é que suas memórias evoluíram para atender às necessidades presentes. Durante a campanha, ela passava boa parte de seu tempo fazendo discursos e dando entrevistas em que se descrevia como uma líder experiente e "testada em batalha". A um dado momento, parte de seu cérebro passou a acreditar nisso e reconstruiu as memórias de modo a acompanhar essa mudança. A menina com flores virou um franco-atirador. Não seria uma surpresa descobrir que Hillary mais do que ninguém levou um susto quando foi desmentida pelo vídeo.
Os descaminhos da memória talvez bastem para explicar o escorregão da atual secretária de Estado dos EUA, mas são francamente insuficientes para dar conta dos casos de Palocci, Arruda, Renan etc. Se queremos chegar a um modelo plausível, precisamos recorrer a outras gambiarras.
Uma linha de investigação psicológica que fez escola é a teoria da dissonância cognitiva, lançada por Leon Festinger nos anos 50. O que ela nos diz basicamente é que a mente faz o que pode para encontrar um sentido no mundo. O cérebro sempre procura colocar nossas cognições, isto é, pensamentos, sensações, memórias e projetos, em linha. Quando esses módulos estão em conflito e percebemos isso, diz-se que elas estão em dissonância.
E o problema (pelo menos no mundo moderno) é que essas tais dissonâncias cognitivas são uma verdadeira tortura neuronal. Para evitar a dor da contradição, o cérebro simplesmente trapaceia, a fim de reconciliar as cognições. Ele se utiliza do que estiver à mão. Valem truques bobos, como simplesmente fingir que não viu. Não é um acaso que um dos mais arraigados hábitos de políticos seja responder apenas o que lhes interessa, ignorando as perguntas difíceis.
Quando isso não é suficiente, linhas de defesa mais complexas são acionadas. Memórias, como já vimos, podem ser suprimidas e alteradas. Cognições harmonizadoras podem ser criadas. Esses mecanismos, que fazem o gozo dos psicanalistas, podem ser fortes o suficiente para contrapor-se a evidências empíricas e ao raciocínio lógico. Um exemplo clássico é a raposa de Esopo, a qual, incapaz de alcançar as uvas, conclui, sem nenhuma base fática, que elas estavam verdes e, portanto, ruins. Quem nunca "justificou" sua própria barbeiragem "dividindo" a responsabilidade com o motorista adversário: "também, ele nem buzinou antes de cruzar!"?
Somos medianamente capazes de identificar esses mecanismos de autoengano quando atuam em terceiros, mas é bem mais difícil apanhá-los em flagrante em nós mesmos. Isso significa que nossos incansáveis homens públicos acreditam nas histórias que criam? A resposta aqui é mais intricada. Seteven Pinker em "How the Mind Works" lembra que nossos cérebros são tudo menos unos (são as gambiarras e puxadinhos em ação). Se uma parte de nós se deixa enganar por uma patranha que nós mesmos inventamos, há uma outra que sabe a verdade. É só por isso que observações negativas que outros fazem a nosso respeito doem. Se a crítica fosse verdadeira e todos os módulos neuronais estivessem de acordo com isso, ela não nos incomodaria. Tratar-se-ia, afinal, de notícia velha, à qual já nos teríamos habituado. Se, por outro lado, nenhuma parte estivesse de acordo com essa observação pouco favorável, nós imediatamente a descartaríamos como falsa. Mas, se o juízo provoca incômodo, é porque pelo menos uma parte sabe que ele tem algo de verdadeiro.
E isso, é claro, vale não só para políticos profissionais mas para qualquer pessoa As trapaças, justificativas e também as tragédias dos políticos adquirem proporções caricaturais porque eles constituem o recorte mais hipersocial da espécie hipersocial que é a humana. Alguns cientistas como o primatologista Frans de Waal defendem a chamada hipótese da inteligência maquiavélica, segundo a qual a mentira e o logro com vistas a obter posições sociais mais elevadas, mais do que a criação de ferramentas ou o cozimento da comida, foi a grande força a moldar a evolução humana.
Não me é dado conhecer o que se passa na cabeça de Palocci ou de qualquer outro político apanhado com a boca na botija, mas não ficaria surpreso em saber que eles se consideram, se não inocentes, bem menos culpados do que nós os julgamos. No fundo, quem tem razão é La Rochefoucauld, que escreveu: "A opinião que nosso inimigo tem de nós está mais perto da verdade que a nossa própria". São as gambiarras e puxadinhos coisas da natureza humana.

Hélio Schwartsman

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