sexta-feira, 8 de julho de 2011

Jornal de bairro

Primavera árabe? Inações de Obama? Jornal inglês grampeando adoidado todo mundo? Recessão? Grécia, Irlanda e Portugal?
Estou pouco sabendo ou ligando. Mal presto atenção aos noticiários de TV, já deixei meu jornal habitual de lado.
Bordei com lãs coloridas e emoldurei na sala o quadrinho dizendo, "O mundo todo não vale o meu lar". Fosse dono de bar, teria afixado na parede o aviso, "Fiado só amanhã".
Se é para ficar em casa, e os deuses decidiram que é para eu ficar em casa, com correia curta e cuia d'água no chão da cozinha, eu fico em casa. A casa e suas extensões. Todo o resto, menos os bancos e os caraminguás que eles vão aos poucos me levando, é de menor importância.
A extensão principal de minha casa é o bairro em que fica. Passei a me interessar apenas ao que nele se passa.
E um sinal (também conhecido por semáforo) que não funciona direito na esquina de Onslow Gardens me é mais importante que a posição do primeiro-ministro David Cameron em relação ao bombardeio de Khadafi, e se ele é ou não ilegal.
Legal mesmo é o que, agora toda semana, aguardo, pressuroso, às quartas-feiras, e que só diz respeito ao que há e não há no meu (depois de 30 anos, confesso que dele me apossei um pouco) borough, ou bairro.
Falo com orgulho, pagando altas taxas de imposto predial ao Royal Borough of Kensington & Chelsea, assim mesmo, com o "real" ali, mais valioso para mim que a moeda brasileira homônima, e o ampersand que liga os dois, pois são, na verdade, dois bairros. Ampersand. Assim:&. Nunca o batizamos nem direito nem errado.
Trata-se de um sinal gráfico que representa conjunção. Ou seja, o "E" comercial. E já que é comercial, abreviarei comercialmente: o K&C. Tá tudo lá. Já esteve tudo lá. Tudo estará lá.
Passo os olhos, anoto o exemplar desta semana e começo dando seu nome todo, The Kensington & Chelsea Chronicle, distribuído gratuitamente, mas, para quem mora em bairro mais pobre, e quer saber das coisas, tem que morrer em 60 pence de uma libra para ficar por dentro.
Por dentro de quê, é a pergunta implícita no mais recente exemplar, o de julho? Comecemos pela manchete escandalosa de primeira página: o Conselho não irá socorrer a loja de antiguidades Good Fairy (Fada Boa) situada no Mercado de Portobello, tradição turística da cidade há décadas.
A loja foi fechada em maio por enfrentar dificuldades financeiras. A turma do Conselho, que não é de brincadeira, disse não a um auxílio financeiro e, agora, a Good Fairy encontra-se à venda pela quantia de mais ou menos 4 milhões de dólares para a primeira fada boa que assumir a forma de oligarca russo. Ou vice-versa.
Ainda na primeira página, uma foto colorida da prefeita de Chelsea, Julie Mills, portando em torno do pescoço, como se fosse uma original estola, uma vasta jiboia.
O fato ocorreu durante um carnaval no norte de Kensington. Sim, o bairro é festivo.
Voltemos ao popular mercado de Portobello. Alex Ayad, de 31 anos, durante as próximas semanas irá liderar uma campanha em prol de peixes orgânicos do mar do Norte (peixe orgânico, é? Ah, Kensington! Ó Chelsea!). E os banheiros públicos (continuamos em Portobello) irão passar por significativas reformas.
No hospital de Chelsea e Westminster (infelizmente conheço muito) haverá uma tentativa de informatizar seu banco de dados via essa, para mim, novidade da tal cloud, ou nuvem, cibernética. Contanto que faça com que as enfermeiras atendam de noite os pacientes e cantem e conversem mais baixo, louvo a iniciativa.
O Conselho é sério. Andaram reclamando dos perigos de uma travessia em Holbein Place, ali perto da estação de metrô de Sloane Square. Providências enérgicas vêm aí.
O Conselho também é brincalhão. Lançou um projeto destinado a fazer com com que os habitantes do "real" ou "nobre" bairro dancem mais. Falando sério: o mercado imobiliário está dando a volta por cima e, ao que parece, vem aí coisa à beça tudo numa boa.
K&C, não fosse humano, também tem suas tristezas. Imaginem que encontraram um garoto vietnamita, sem nenhum documento, vagando pelas ruas do geminado bairro. Para a polícia, o rapaz declarou ter sido vítima de rapto e estupro.Tristezas a que todos os bairros estão sujeitos em qualquer parte do mundo.
E por aí afora. Prefiro encerrar numa nota alegre, mais K&C: uma comemoração multicultural teve lugar no Centro Cultural Irlandês em benefício de refugiados de todas as partes.
Houve música tradicional iraniana, danças bósnias e pratos variados iraquianos. A coisa toda foi considerada um sucesso, merece todo nosso (estamos aí) incentivo e deverá passar a fazer parte fixa do calendário de festividades do Royal Borough of Kensington & Chelsea.

IVAN LESSA

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