terça-feira, 26 de julho de 2011

Crispación

Os ânimos estão para lá de exaltados na Argentina. Que nossos vizinhos sejam um povo muito politizado e que gosta de uma boa discussão sobre os problemas e a história de seu país, não é exatamente uma novidade.
Essa característica, porém, havia estado um tanto suspensa na década de 90, durante os anos Menem, em que se viveu uma ilusão primeiro-mundista por conta da dolarização da economia.
A coisa começou a esquentar de novo em 2001, com o chamado "estallido" e a queda do governo De la Rúa. Em 2008, agravou-se com a crise entre Cristina Kirchner e o campo, seguida da guerra aberta entre a presidente e o grupo "Clarín".
Agora, em plena campanha eleitoral que decide o futuro do chamado kirchnerismo, o debate vem ganhando contornos violentos.
No próximo domingo, os portenhos irão às urnas para o segundo turno da eleição para a prefeitura de Buenos Aires. E, no dia 14 de agosto, os argentinos votam nas primárias obrigatórias para a Presidência a eleição propriamente dita é dia 23 de outubro.
O empresário conservador Mauricio Macri, atual prefeito e uma das principais forças de oposição à presidente peronista Cristina Kirchner, ganhou o primeiro turno, no último dia 10, com uma massacrante diferença de 47% a 27%, de seu adversário, Daniel Filmus, peronista.
O resultado contrariou várias pesquisas, que apontavam, sim, uma vitória de Macri, mas com uma diferença muito menor de votos.
Grande derrota para o kirchnerismo, a vitória parcial de Macri em Buenos Aires fez com que defensores do governo federal viessem à público, e com uma violência verbal impressionante.
Primeiro foi o músico Fito Páez, que por meio de um artigo no jornal "Página 12", hoje governista, disse que sentia "asco" de metade de Buenos Aires, referindo-se aos eleitores de Macri. Houve respostas violentas de quem viu nas palavras do músico uma intolerância tremenda.
O filósofo e articulista Alejandro Rozitchner, no "La Nación", perguntou: "Como pode um artista popular do tamanho de Fito Páez terminar expressando-se de maneira tão fascista, desprezando aos que pensam de modo diferente?".
A ele somou-se Horácio González, sociólogo que dirige a Biblioteca Nacional e é um dos principais nomes do Carta Abierta, grupo de intelectuais kirchneristas.
González, que foi o responsável pelo vexaminoso episódio em que o liberal peruano Mario Vargas Llosa quase foi impedido de participar da Feria del Libro bonaerense, em abril, disse que a escolha dos eleitores portenhos revelavam uma ideologia "tacanha" e "egoísta".
Agora, a maioria dos institutos de pesquisa está sendo metralhada por errar feio o resultado positivo de Macri. Com isso, coloca-se em dúvida também os números que vêm sendo apresentados mostrando um favoritismo arrasador para Cristina na eleição federal, em relação ao segundo colocado, o radical Ricardo Alfonsín.
Para o pleito do próximo domingo, o instituto de pesquisa Poliarquía, um dos únicos confiáveis, cravou que Macri terá 52,1% dos votos, contra 32,8% de Filmus.
O termômetro político expõe um país em estado febril.
A revelação, na semana passada, de resultado de exame de DNA que mostrou que os filhos adotivos da dona do "Clarín", Ernestina Herrera de Noble, não são filhos de desaparecidos, gerou mais um capítulo na guerra entre o governo e esse veículo.
Representou uma derrota para Cristina e trouxe à discussão a instrumentalização dos direitos humanos para uso político.
No último sábado, foi a vez de nova troca de animosidades entre o campo e o governo. Na inauguração da tradicional feira da Sociedade Rural Argentina, o presidente da mesma, Hugo Luis Biolcati pediu votos contra o governo, que acusou de corrupto e de comprometer as instituições.
Os kirchneristas responderam, por meio do ministro da Agricultura, Julián Domínguez: "enquanto ele (Biolcati) mentia, nós assinávamos na China oito convênios históricos para beneficiar o país".
Em "Argentinismos" (ed. Planeta), o escritor Martín Caparrós elegeu os principais verbetes da vida política do país em tempos de kirchnerismo: "militância", "progressismo", "setentismo", "presidenta", "Él" (referindo-se ao finado Néstor Kirchner) e outros."
A que mais chama atenção, porém, é "crispación" (irritação), que ele define como o estado de espírito atual da sociedade. Caparrós relata que, em 2008, durante a crise entre Cristina e o campo, discutira com um grande amigo, aos gritos, durante um jantar, por discordar politicamente dele. Nunca mais o voltou a ver.
Segundo ele, "crispación" significa: "a decisão de um governo que pensou que enfrentar era uma boa tática de poder, a obstinação de uma oposição que supriu a falta de ideias e iniciativas apenas com a crítica, a confusão de certos discursos e relatos e, sobretudo, situações como aquela: brigas entre parentes, entre amigos, entre colegas, enfrentamentos que a opinião pública carregou de uma violência inabitual, inesperada."
Daqui até a definição de ambas as eleições, muitas farpas e flechas devem ser trocadas nesse processo que evidencia uma polarização crescente entre kirchneristas e não-kirchneristas na sociedade.
Como definiu o cientista político Natalio Botana em artigo para o "La Nación", "nunca neste mesmo período houve um choque tão rotundo entre os estilos que apostam a favor do consenso e em respeito ao contrário".
O início da campanha televisiva, ontem, deve marcar outro estágio desse embate. Resta torcer para que a violência do discurso e das ações do e contra o Estado não comprometam o jogo democrático.

Sylvia Colombo

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