quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Sibéria

De repente, deu branco. Naquela vastidão gélida e sem contraste, o frio terrível de estar perdido, o medo, a claridade cegante. E um fio sinuoso de neve correndo ao capricho do vento e acima dos sólidos gelados por invernos passados. Estava perdido. Precisava de tempo para recompor um roteiro de possíveis escapes. Pouco a pouco, as ideias se ordenariam, mas o momento era de angústia e paciente espera. Sem certeza alguma. Apenas uma espera, com a vista turva precisando entrar em foco.
Penso até que era um vício estimulado pela urgência. As vertigens e desesperos voltam em ciclos. Acontece quando menos se espera. Mas a cegueira siberiana não é apenas um mal que perturba associada a temperaturas baixas. Afeta a todos diante do direito e da razão. Pela turbulência dos processos sólidos para os líquidos. Sem que isso seja garantia de temperaturas mais amenas. É como uma esperança de diluir o branco e reverter as trilhas do degelo.
Não tem nada a ver com alucinações. Há tempos que um título de filme não sai da cabeça. É velho, de 1971, datado, faz muito tempo que o vi. Ele sempre pareceu melhor do que o próprio filme "O Medo do Goleiro Diante do Pênalti", de Wim Wenders. Wim Wenders também tem títulos ótimos em sua filmografia. O temor do goleiro na frente do gol é um deles e não parece uma maldição exclusiva de jogadores de futebol. É de novo o branco da cegueira, a plenitude enganosa, o conflito abissal, os fantasmas brancos.
O gol seria apenas um pleonasmo, uma redundância, que vai da euforia à frustração de uma cobrança mal feita. Gol é um ponto que se alcança de cada vez. O medo dos goleiros diante do pênalti é inevitável em qualquer partida. Só passa depois do alívio do tento. Ou não passa, dependendo de uma cobrança mal feita. Ainda tem a carga dessa maldição. Pode continuar zero a zero.
Nunca estive na Sibéria. Ainda não tive motivos para lá ir. Só se fosse por solidariedade aos povos das tundras, mas não me parece o suficiente. Penso sempre que o cinema, com todos os sacrifícios, já cumpre esta missão em nosso lugar. O cinema, ao final, presta-se a dar conta desta carência por imagens imperativas. Seja por pela força ou obstinação.Temos a Sibéria pelos terríveis relatos de Aleksandr Soljenitsin, em que não se acreditava por razões estúpidas da Guerra Fria. Pois é, ainda temos a literatura. Nunca será tarde para resgatar na preguiça de um velho livro, recuperado na estante, o que este senhor implorava para que lhe dessem razão.
Aí está também um novo filme, "Povo Feliz", que veremos na seleção da próxima Mostra. Levou um ano inteiro para ser rodado com intervenções e aquela voz pontuada e metálica inconfundível de Herzog, com a paciência perene dos ciclos que se repetem. Mesmo que as águas corram abaixo das correntes gélidas do palo Ártico e pareçam invisíveis. O filme é produzido de novo pelo visionário Werner Herzog e aparece um colaborador, Dmitry Vasyukov, para dirigi-lo. É o sacrificado, o residente, o guarda-costas. O câmera que segue o ser solitário em busca de suas caças congeladas e disformes pelo gelo patético e impiedoso, geralmente pequenas lontras que servirão mais tarde para fazer peles de abrigo ou para o comércio.
Desde vez, ao invés dos índios peruanos Aguaruna (Awájun), que juraram de morte ao ator Klaus Kinski durante as filmagens em plena selva amazônica.
"Povo Feliz" segue a pequena comunidade dos Bakhtia, de apenas 300 habitantes, perdida na vasta região do Ural, com população espalhada na vasta região do Ural, com 38 milhões de habitantes. Um sul próspero em contraste com regiões quase abandonadas e inabitadas. É este o cinema que fascina Herzog. O deserto humano. Um território de fantasmas, de vastidão branca, onde só se conta com a comovente solidariedade e lealdade de huskys siberianos. Há apenas duas possibilidades de se chegar ao lugar. Uma por helicóptero, a outra de barco.
Werner Herzog apresenta agora um duro documentário sobre a vida do povo que vive no coração da Taiga Siberiana. A câmera segue a maior parte do tempo um caçador. Não há como se comunicar por telefone, não há água corrente ou recursos médicos. O povo fica por conta do próprio destino. Os seus habitantes, com rotinas diárias que nunca foram mudadas através dos séculos, seguem rituais e tradições culturais milenares. Se a civilização humana acabar um dia eles irão sobreviver. Graças aos conhecimentos herdados pelos seus ancestrais. E a esperança sempre renovada pelas trilhas do degelo.

Leon Cakoff

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