domingo, 7 de agosto de 2011

O homem-tronco

Parecia um montinho de lixo.
Enegrecido, confundia-se com o asfalto quente àquela hora, apesar da temperatura amena do inverno carioca.
Um montinho de sujeira no canto da sarjeta, enquanto centenas de gentes muito bem-ajambradas percorriam a avenida fechada ao tráfego, assim como em todos os domingos, para a caminhada democrática junto ao mar de Ipanema.
Tão democrática que ele estava lá, junto à sarjeta, e não era lixo, não, era um homem.
Um meio homem.
Um homem-tronco.
Um pequeno ser com cerca de meio metro de um conjunto disforme de tronco-e-pernas totalmente atrofiadas, encimado pela cabeçorra hirsuta, já meio encanecida.
De cara, levei um susto.
Não apenas pela cena toda - o contraste entre tanta gente bonita, dourada, chique e saudável perambulando alegremente e aquele indivíduo absolutamente prejudicado, se equilibrando sobre um skate velho, seu único e possível meio de transporte.
A questão é que eu já conhecia o cara.
De nada menos que uns 15 anos atrás, quando morei em Ipanema e ele era frequentador/pedinte da praça Nossa Senhora da Paz, junto de casa e pertinho dali onde nos encontrávamos naquela manhã de domingo.
Quis me aproximar mais para, sei lá, dar uma graninha, perguntar alguma coisa, perguntar seu nome, mas logo vi que ele estava como costumava ficar quando o via sempre que passava pela velha praça de Ipanema nos anos 90: num tremendo porre.
Um porre fedorento, que atraía moscas e que fazia com que ele mantivesse os olhos fechados e balançasse pra lá e pra cá sobre o skate, com um dos braços esticados servindo de apoio, absolutamente indiferente ao dia lindo, às pessoas, ao barulho do mar.
Os cabelos e a barba embranquecidos eram basicamente a única coisa que o diferenciava de outros tempos.
Tempos em que o já então costumeiro pileque, ao invés de nocauteá-lo, despertava uma fúria incontrolável, fazendo com que ele esbravejasse incongruências e xingasse todos que se aproximassem o que, além de tudo, era péssimo para os seus negócios.
Quando estava sóbrio, seguia a sarjeta pedindo dinheiro aos motoristas retidos no sinal fechado.
Agora ele estava apenas ali, quieto, a cabeça tombada, o corpinho amontoado, um montinho inofensivo que para meu espanto atravessara mais de uma década de absoluta precariedade, movimentos tolhidos, relações prejudicadas, horizontes negados.
Como sobreviveu? O que viu, o que passou, o que sofreu, percorrendo tantos anos nesta sina desgraçada? E quanta gente jovem, saudável, bonita morreu neste tempo em que ele, o pequeno homem tronco, seguia seu caminho sobre uma tábua de skate improvisada?
Foi difícil conter a emoção, confesso.
Sobretudo quando me dei conta da provável razão pela qual, nos idos dos anos 90, eu o encontrava embriagado, gritando e xingando nas ruas do meu bairro.
Naquela época ele já sabia, meu Deus, que o seu sofrimento iria durar tanto tempo...

Luiz Caversan

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