terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Trapero e Coppola

Estão em cartaz em São Paulo o excelente "Tetro", do norte-americano Francis Ford Coppola, e o bom "Abutres", do argentino Pablo Trapero. São filmes bastante diferentes, mas que têm em comum dois elementos que, juntos, ajudam a configurar a tragédia de cada história: Buenos Aires e acidentes de carros.
A obra mais recente do diretor de "Apocalipse Now" e "O Poderoso Chefão" se passa principalmente nas regiões de San Telmo e da Boca. Ou seja, a Buenos Aires que passou a ser ocupada por italianos principalmente no século 19. A vinda desses europeus foi estimulada pelos intelectuais da época, mas vista com muito preconceito pela aristocracia local, que os responsabilizou até mesmo pela terrível epidemia de febre amarela que assolou a cidade na segunda metade daquele século. Com o tempo, o lugar acabou virando uma zona meio marginal mas irresistivelmente boêmio, famoso por seus cafés, bares e casas de tango e espetáculos.
É nesta zona que Coppola ambientou a trama de "Tetro", nos dias de hoje. Bennie é um rapaz norte-americano de 18 anos que vem buscar respostas sobre sua origem com o suposto irmão, Tetro. Este não aceita bem a visita, por razões que descobriremos mais tarde. Tetro abandonou a casa paterna nos EUA fugindo de dois traumas. O primeiro, ter sido responsável pela morte da mãe num acidente de carro. O segundo, ter tido a namorada roubada pelo pai, um maestro famoso.
Invertendo um clichê, as cenas do presente são filmadas em preto e branco, enquanto as do passado são coloridas. A trilha sonora é do renomado compositor contemporâneo Osvaldo Golijov (que coincidentemente passou uma curta e exitosa temporada com a Osesp neste ano).
Rejeitado por Tetro, Bennie é acolhido pela mulher dele, Miranda (a espanhola Maribel Verdú, que agrega um toque do cinema mágico deste país). É ela quem o leva para o hospital depois que ele é atropelado por um carro e quem o alimenta, durante a recuperação, com os manuscritos de uma obra inacabada de Tetro.
Bennie vê nesses papéis a possibilidade de colocar um ponto final num mistério, e inventa um fim para o texto de Tetro, à revelia deste. A obra vira uma peça de teatro que é aclamada pela temida crítica local, uma mulher chamada Alone (que parece saída de um filme de Almodóvar ou David Lynch). Na noite em que a montagem seria consagrada, porém, há uma reviravolta e um desenlace que por pouco não é interrompido por um novo acidente de trânsito.
Já "Abutres" ocorre numa região sem nada do glamour da Boca ou de San Telmo. Estamos na San Justo natal de Trapero, região da grande Buenos Aires. Um subúrbio parecido ao local onde foi ambientado "El Bonaerense", talvez o filme do argentino mais conhecido internacionalmente. A maior parte da trama ocorre durante a noite, o que torna o filme propositadamente incômodo. A médica Luján (Martina Gusmán) atende acidentados quase sem parar durante intermináveis turnos. E só aguenta o tranco porque aplica em si mesma doses de alguma droga.
É nas ruas que Luján conhece Sosa (Ricardo Darín), um "abutre". Ou seja, um sujeito que aparece ao morto-vivo recém-acidentado e se oferece para ser seu representante para a obtenção do seguro. Os "abutres" são aproveitadores sem dó de suas vítimas, e chegam até a encenar acidentes (às vezes com consequências trágicas) em troca de alguns pesos. Tão logo o filme entrou em cartaz, a imprensa local de Buenos Aires pôs-se a fazer reportagens sobre os verdadeiros "abutres", que viraram assunto de debate nacional.
Luján e Sosa se apaixonam e têm um romance nada adocicado devido à desesperança em que vivem e à dureza de seu cotidiano. Decidem sair desse universo, mas é tarde demais e Sosa se vê enredado numa encrenca muito mais séria, que logo se materializará num crime.
Se "Tetro" quase acaba num acidente de trânsito, "Abutres" sim. E apresentado num sensacional plano-sequência que deixa um gosto amargo na boca. Ao final, a noite de Buenos Aires acolhe as duas tragédias, a familiar de Coppola, e a da "dura realidade" de Trapero.
O filme de Coppola não foi bem recebido pela crítica internacional, injustamente. Já o de Trapero vai representar a Argentina no Oscar, com menos chances de repetir o feito de "O Segredo de Seus Olhos" no ano passado. De todo modo, ambos estão no circuito comercial por aqui e merecem ser vistos.

Sylvia Colombo

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