quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O Jogador

Ainda não foi desta vez que o jogo foi legalizado no Brasil. A turma ligada à moral e aos bons costumes se juntou à bancada da bala (polícia, Ministério Público, Fisco) e conseguiu barrar o projeto de lei dos bingos, que era defendido por setores associados à indústria do turismo e sindicatos de trabalhadores.
Não estou na folha de pagamento de nenhum desses lobbies e muito menos na dos donos de bingo, bicheiros e traficantes de drogas. Nunca entendi, porém, em qual lógica se baseia a ideia de que o Estado precisa proteger o indivíduo de si mesmo. Ou melhor, até compreendo, mas é uma lógica meio torta. Ela é, para dizer o mínimo, contrária a todos os princípios que fundamentam as sociedades abertas contemporâneas, que têm como pressuposto a noção de que os cidadãos são, na maior parte das vezes, seres capazes de tomar decisões racionais e por elas responder. Se não fosse assim, a própria lei penal deixaria de fazer sentido, para ficar num exemplo caro ao pessoal da segurança.
Receio, entretanto, que já esteja me antecipando. Comecemos pelo lado obscuro do jogo. Casos de pessoas que desenvolvem sérios problemas psicológicos e financeiros por causa da mania de apostar são conhecidos desde a Antiguidade. Foram imortalizados por autores como Dostoievski, cujo clássico "O Jogador" vale por um tratado de psiquiatria.
O jogo compulsivo, a exemplo das dependências químicas, é uma patologia crônica e progressiva. Associa-se ainda a outras moléstias psiquiátricas, como alcoolismo, tabagismo, depressão e até ideações suicidas. Contrariando o estereótipo das velhinhas viciadas em bingos, o que a literatura mostra é que a população mais suscetível é composta por homens jovens. O fator genético parece ser relevante. Filhos de jogadores têm maior probabilidade de desenvolver a moléstia.
E a ideia de que há uma correlação entre a exposição ao jogo e a maior prevalência de apostadores patológicos é não apenas intuitiva como está até certo ponto amparada por dados empíricos. Numa série de trabalhos realizados nos anos 90, Rachel Volberg, uma das maiores especialistas dos EUA no assunto, apresentou números que apontavam para um crescimento da prevalência de jogadores-problema e patológicos e para uma maior concentração destes nos Estados em que havia mais oportunidades para fazer apostas. Não por acaso, Nevada, onde fica Las Vegas, era o campeão.
Mais recentemente, porém, surgiram algumas meta-análises sugestivas de que a situação pode não ser bem assim. Um trabalho realizado em 2007 a pedido da Comissão de Jogo do Canadá e assinado por Jamie Wiebe e pela própria Volberg indica que a introdução de novas oportunidades de apostar (loterias, cassinos, internet) faz com que, num primeiro instante, aumente a prevalência de jogadores patológicos, mas, após algum tempo, esse número tende a estabilizar-se e até a declinar. Depois de analisar mais de uma centena de estudos, os pesquisadores estimam que a proporção de jogadores patológicos na população mundial gravite em torno de 1%.
Mesmo os dados referentes a Nevada podem ser relativizados, quando se considera que a fatia dos jogadores-problema é significativamente maior entre os que se mudaram para o Estado há menos de dez anos do que entre os que nele nasceram: um dos sintomas da patologia é fixar residência perto de um cassino.
Outro aspecto interessante é que o jogo é literalmente um negócio para trouxas. Trabalho de 2001 do Instituto Australiano para Pesquisas em Jogo mostrou que 48,2% das receitas de caça-níqueis no país vinham de jogadores-problema ou patológicos uma fatia de menos de 10% da população. O apostador comum, que gasta uns poucos trocados numa noite num cassino, pode até estar fazendo um "investimento" razoável, se o custo da diversão entrar no cômputo. O jogador habitual certamente está perdendo dinheiro, pois a única certeza probabilística é que, no longo prazo, os exploradores de jogos saem ganhando. É verdadeira a máxima segundo a qual a única forma de ganhar num cassino é sendo o dono dele.
A lista de problemas não acaba aqui. A associação entre jogo e crime é mais do que uma fatalidade histórica. Cassinos são lavanderias perfeitas para toda espécie de dinheiro obtido ilegalmente. Como proprietário de uma igreja, posso assegurar que só o pessoal do jogo rivaliza conosco na facilidade de oferecer "origem" para recursos financeiros que aparecem do nada.
Não devemos, contudo, ser ingênuos. Ninguém deixa de cometer um crime lucrativo porque a taxa cobrada para lavar o dinheiro resultante é elevada. A analogia é com o IR: nenhum trabalhador recusa um aumento salarial porque a elevação o faz cair numa alíquota de recolhimento maior.
Apesar de todos esses poréns e de outros que poderíamos acrescentar, acho que o jogo deve ser, sim, legalizado. Ninguém disse que o mundo é um lugar seguro. Todo indivíduo tem um ou mais pontos fracos e se sujeita diariamente a dezenas de tentações que podem atirá-lo em seu inferno particular. Assim como o alcoólatra e o diabético, que excedem os 10% da população, não podem pretender eliminar todos os bares e plantações de cana de açúcar do planeta, a existência de uma fração demográfica com propensão para desenvolver transtornos de impulso não recomenda a proibição de todo um ramo de atividade.
É difícil encontrar um problema de saúde pública mais premente do que o dos acidentes automobilísticos, que deixam um saldo próximo de 40 mil mortes anuais no Brasil. Poderíamos levar essa cifra para algo bem perto de zero se simplesmente proibíssemos carros e motos de circular em todo o país. Não o fazemos porque estamos convictos de que, apesar da questão sanitária, que é grave e real, vale a pena termos a liberdade de possuir e conduzir veículos automotores. Pelo menos fora dos grandes centros urbanos, eles nos permitem locomoção rápida e constituem uma importante engrenagem da economia nacional, gerando milhões de empregos diretos e indiretos.
De resto, como bem o atesta o drama dos viciados em drogas ilícitas, a proibição raramente é uma solução. Ela pode, no máximo, contribuir para reduzir a prevalência. Mas, no caso do jogo no Brasil, talvez nem isso. Quem quiser apostar dinheiro contra as forças do acaso pode perfeitamente fazê-lo dentro da lei e até sem sair de casa, seja numa das dezenas de loterias federais e estaduais seja nos milhares de cassinos virtuais disponíveis na internet. Quem usa as loterias pode pelo menos dizer que está ajudando a financiar a previdência, a educação, o esporte, a cultura e a segurança.
Os que estão muito preocupados com a associação entre jogo e crime poderiam facilmente superar o obstáculo advogando pela criação da Embrassino (Empresa Brasileira de Cassinos), que, ao lado na Narcobrás, explorariam o monopólio natural do Estado nas áreas de jogo e drogas. Essa medida simples bastaria para afastar o risco de traficantes tornarem-se bingueiros ou de as máquinas serem calibradas para roubar. Mas é claro que isso não vai acontecer. Pelo menos para os políticos, o filé mignon nessa história toda é criar uma nova e opulenta categoria de empresários-doadores de campanha.
No fundo, a questão diz respeito aos limites da interferência sobre a vida do cidadão. Estou entre os que acreditam que o poder público só deve se valer de seu direito de proibir em situações extremas, ou seja, quando há risco real e desproporcional para terceiros. Penso em casos como o de trafegar pela contramão ou de dirigir embriagado. Se o mal resultante da ação está limitado à própria pessoa (uso de drogas) ou está dentro dos limites discricionários facultados a cada cidadão (ficar doente por fumar ou comer muito churrasco) não compete ao Estado senão orientar, oferecendo a melhor informação disponível e, se for o caso, tratamento.
É claro que eu também não sou um pacóvio. Nem Kant achava que éramos racionais o tempo todo. Ou, para colocar a coisa em termos mais modernos, somos previsivelmente irracionais. Ainda assim, é preciso reconhecer que a maioria de nós somos capazes de pelo menos acompanhar uma argumentação racional. E isso basta para validar o princípio de que, no geral, cada indivíduo é o melhor juiz para decidir o que mais lhe convém. Mesmo que isso não seja verdade sempre, precisamos agir como se fosse, ou instituições como a democracia e o direito deixam de fazer sentido. Façam suas apostas.

Hélio Schwartsman

Nenhum comentário:

Postar um comentário