terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Guadalajara

Passei cinco dias em Guadalajara, no México, para cobrir e acompanhar a 24ª edição da Feria Internacional del Libro. Trata-se do maior evento literário da América Latina, voltado ao mercado de língua hispânica, reunindo 1.900 editoras e 620 eventos com autores durante uma semana.
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Neste ano, a festa aconteceu num momento muito particular para o México. Apesar de estar lidando com números assombrosos de violência --consequência da ofensiva declarada pelo presidente Felipe Calderón contra o narcotráfico--, duas datas têm trazido à tona discussões sobre a história do país. A saber, os 200 anos do começo das lutas de independência (em setembro) e os 100 anos da Revolução Mexicana (em novembro).
O México, tradicionalmente, sempre teve uma produção editorial grande na área de história. Porém, neste ano, por conta das efemérides, esta parece ter ganho novo fôlego. Uma rápida conferida nos estandes de editoras importantes, como a Fondo de Cultura Económica ou a Siglo XXI, demonstram isso. Surgiram reedições de obras famosas, como as de Martín Luiz Gusmán ("El Águila y la Serpiente", "Memórias de Pancho Villa"), biografias dos líderes revolucionários e novos estudos sobre o período da ditadura de Porfírio Diaz.
Mas uma das coisas mais interessantes relacionadas ao tema foi uma exposição que vi paralelamente, no Museu Regional de Guadalajara, imponente edifício no coração do centro histórico da cidade.
Trata-se de uma mostra que reúne fotografias e filmes de várias etapas do processo revolucionário que sacudiu o país por praticamente dez anos a partir de 1910. Como bem observou o escritor Juan Villoro em artigo recente para o "El País", a Revolução Mexicana chegou acompanhada de um potente invento do século 20, o cinema. Assim, "os olhos de Zapata, os sombreiros largos, os ataques das cavalarias passaram do campo à tela e desde aí ao imaginário".
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Nas fotos e filmes reunidos no museu estão imagens como estas e muitas mais. Foram captadas por fotógrafos e cinegrafistas mexicanos, inicialmente, depois também por norte-americanos que cruzaram a fronteira para cobrir o conflito. Veem-se milícias formadas por adolescentes, pelotões de fuzilamento prontos a atuar, mortos e feridos espalhados pelo chão, além das aparições públicas de governantes, como o ornamentado Díaz, e depois Francisco I. Madero e Venustiano Carranza, todos imortalizados em fotos amareladas e em película.
A FIL Guadalajara também abrigou lançamentos de livros sobre os processos de independência de outros países latino-americanos, que também comemoram o bicentenário em 2010. Uma das obras mais elogiadas foi a do colombiano William Ospina, "En Busca de Bolívar" (Ed. Norma).
Nela, o autor dialoga com as principais biografias já existentes do prócer, como as de Gerhard Masur ("Simón Bolívar) e de John Lynch ("Simón Bolívar - A Life"), mas propõe um caminho distinto.
Sem deixar de seguir um roteiro cronológico, Ospina menospreza datas de decisões e batalhas e faz um ensaio em que tenta especular sobre como Bolívar teria se sentido ou pensado antes de cada uma delas. É, antes de tudo, uma análise das ideias então em debate naquele contexto.
Entre as passagens mais marcantes do livro está aquela em que ele investiga a ambígua e trágica relação de Bolívar com o veterano revolucionário Francisco de Miranda. Ou os momentos em que tenta mapear as origens do pensamento do libertador, remontando à influência que teve sobre ele o filósofo e tutor Simón Rodriguez --imortalizado numa curiosa foto, que estampa hoje uma das notas dos bolívares venezuelanos, em que aparece com os óculos fora de lugar.
O ponto alto da obra, porém, é quando Ospina especula sobre a força que a imagem de Napoleão teve sobre o jovem Bolívar. O colombiano analisa a ambiguidade dessa referência. Se por um lado Bolívar era contra o novo símbolo de poder absoluto no qual Napoleão se transformava, admirava seu ideal de dar uma unidade a uma grande área.
No final, temos um retrato complexo do aristocrata que abriu mão de sua fortuna em nome da independência das Américas, mas que sempre se sentiu dividido entre sua origem e o que propunha de novo para o futuro. Não há referências sobre o uso político que hoje se faz de seu personagem, mas fica claro que nada poderia ser mais distante entre a figura retratada por Ospina e o ícone a que Hugo Chávez recorre a todo instante.
Também topei, na FIL, com outros novos trabalhos históricos de vários países latino-americanos. É de se ficar torcendo para que editoras aqui no Brasil manifestem algum interesse na tradução e publicação de pelo menos alguns deles.

Sylvia Colombo

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