quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Os melhores anjos

Conforme prometido, resenho hoje o excelente "The Better Angels of Our Nature: Why Violence Has Declined" (os melhores anjos da nossa natureza: por que a violência diminuiu), do psicólogo evolucionista Steven Pinker.
É um catatau de quase mil páginas, no qual o autor tenta nos convencer de uma tese totalmente contra-intuitiva: o mundo está se tornando um lugar cada vez mais seguro para viver, e a raça humana se mostra cada vez menos violenta.
Pinker, é claro, tem consciência da enormidade de sua afirmação: "Num século que começou com o 11 de Setembro, o Iraque e Darfur, dizer que vivemos numa época incomumente pacífica pode soar como algo entre a alucinação e a obscenidade". E é por isso que ele dedica cerca de dois terços do livro a mostrar com números, tabelas e sofisticadas análises estatísticas como as taxas de violência estão caindo.
É evidente que, em números absolutos, o século 20, com duas guerras mundiais e um punhado de ditadores genocidas é o campeão, somando 180 milhões de mortes em conflitos e megamassacres. Trata-se, por qualquer critério imaginável, de um banho de sangue, um hemoclismo, mas isso ocorre principalmente porque nunca fomos tantos. A cifra corresponde a mais ou menos 3% do total de óbitos registrados ao longo do século, povoado por cerca de 6 bilhões de almas. A questão é que, em termos proporcionais, nossos ancestrais que viviam em sociedades sem Estado nos superam com facilidade.
Evidências arqueológicas recolhidas de dezenas de sítios que datam de 14000 a.C. a 1770 d.C. revelam que as taxas de mortalidade em conflitos podiam chegar a inacreditáveis 60%, como é o caso dos índios Creek ao longo do século 14. A mortalidade média verificada nesses sítios foi de 15%.
Pinker identifica seis tendências históricas principais que nos afastaram do caminho da barbárie. A primeira começou a ocorrer vários milênios atrás, quando passamos das sociedades de caçadores-coletores para as de agricultores, com cidades e, principalmente, governos. Esse movimento reduziu drasticamente as guerras e rixas crônicas entre bandos rivais, diminuindo a violência em cinco vezes. É o que o autor chama de "processo de pacificação".
Em seguida vem o "processo de civilização". Ele tem lugar quando aparecem os Estados centralizados, em que a autoridade busca exercer o monopólio do uso da violência. Na Europa, isso começou a ocorrer lá pelo século 16. A redução na violência foi de 10 a 50 vezes.
A terceira tendência é a "revolução humanitária". Ela aparece nos séculos 17 e 18 e se traduz em movimentos filosóficos com o propósito de abolir a escravidão, o despotismo, a tortura judicial, a superstição e até a crueldade com os animais.
O quarto movimento é o que Pinker chama de "longa paz". A partir da Segunda Guerra, países que se democratizaram pararam de travar guerras uns com os outros.
Em quinto vem a "nova paz". Desde 1989, com o fim da Guerra Fria, diminuiu a frequência com que ocorrem genocídios, ataques terroristas e ondas de repressão em regimes autoritários. Ler os jornais pode nos dar a impressão contrária, mas é só uma impressão, que tem mais a ver com os vieses de nossa memória (lembramos do que aparece na imprensa e julgamos que esse é um universo representativo) do que com os números reais.
Há, por fim, o que Pinker chama de "revoluções dos direitos". A partir de 1948, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, começaram a pipocar movimentos com o objetivo de combater agressões a grupos específicos, como mulheres, minorias étnicas, crianças, homossexuais e animais. Como são relativamente novos, a afirmação desses direitos ainda tende a gerar polêmicas, como é o caso do casamento gay.
Depois de nos convencer de que vivemos numa época privilegiada, o autor tenta explicar a psicologia da violência. Baseado principalmente na obra de Roy Baumeister, ele elege nossos cinco demônios internos, que mais frequentemente nos levam a agredir o próximo: predação (ou violência instrumental, com vistas a atingir um fim), dominância (o desejo de exercer autoridade ou obter prestígio), vingança (propensão moralística a reparar injustiças), sadismo (o mal pelo mal, mas este é um fenômeno relativamente raro) e a ideologia (criar a sociedade perfeita ou concretizar os desejos de Deus).
Aos demônios contrapõem-se nossos quatro "melhores anjos", isto é, os equipamentos internos que nos habilitam a resistir à violência e nos colocam na rota da cooperação e do altruísmo: empatia (a capacidade de identificar-se com as alegrias e sofrimentos dos outros), autocontrole (pelo qual resistimos a emoções como a raiva), senso moral (que santifica determinadas regras, tornando-as tabu, como o "não matarás") e razão (que nos permite enxergar além do clã, constituindo a base da civilização).
Evidentemente, esse esquema da obra que descrevi mal arranha a riqueza das análises e os belos "insights" de Pinker. Como não dá para destacar tudo, centro-me no ponto que mais me impressionou, o resgate do Iluminismo.
Apesar de Pinker estar no centro de uma corrente científica que contribuiu bastante para derrubar o mito de que o homem pode pautar-se inteiramente pela razão, ele sustenta que foi no curso da "revolução humanitária", em especial a partir do século 18, com a popularização da imprensa, a publicação de livros e a valorização do conhecimento racional que fomos colecionando nossas mais significativas conquistas no processo de conter a violência.
Ainda que muito lentamente, ideias centrais do Iluminismo como democracia, igualdade dos sexos e das raças, abordagem científica dos problemas e até uma pitada de anticlericalismo foram se impondo. E não é uma coincidência que tenham sido os países em que elas primeiro se implantaram os que mais longe chegaram em termos de paz e civilização.
Ainda que a razão não se comporte exatamente da forma que os "philosophes" a idealizaram e descreveram, parece incontestável que ela esteja no centro de nossas melhores realizações.
Encerro com duas pequenas notas. A primeira é a constatação de que, ao longo das últimas décadas, a inteligência média da humanidade, medida em termos de QI, aumentou bastante. É o chamado Efeito Flynn, que já foi testado e confirmado em 30 países. Se um humano mediano da década de 1910 (que, por definição tinha um QI de 100) fosse trazido para os dias de hoje, sua pontuação seria de apenas 70, no limite do retardo mental. Os ganhos ocorreram principalmente na parte do teste que mede a inteligência geral, em especial a capacidade de raciocínio abstrato, em oposição a habilidades matemáticas e linguísticas. A hipótese de Pinker é que o avanço se deve à popularização do raciocínio científico, ensinado nas escolas, no qual nos habituamos a lidar com regras gerais e arbitrárias. É o mesmo tipo de raciocínio que nos permite abandonar a visão de mundo paroquial, na qual nós e os nossos somos o centro de tudo, e abraçar a noção de que existem normas de aplicação universal. Ora, é justamente essa a ideia por trás da civilização, de que, pelo menos em princípio, temos todos a ganhar com a multiplicação de democracias que sejam capazes de entender-se e integrar-se, ainda que não sem os percalços de sempre.
Antes que o leitor considere Pinker um clone do professor Pangloss, vale o alerta do autor. O fato de que a humanidade tem caminhado para a paz não é garantia de que vá continuar a fazê-lo. Os nossos cinco demônios estão aí e não é muito difícil despertá-los. Há menos de cem anos experimentamos a Segunda Guerra Mundial e, mesmo hoje, apesar de todos os avanços, há ainda guerras civis e genocídios em curso. Manter-se na linha da paz e da tolerância, além de uma boa dose de sorte, exige que nos aperfeiçoemos em criar as condições para que nossos "melhores anjos" preponderem sobre os "demônios". Apesar das aparências, estamos conseguindo.

Hélio Schwartsman

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