quarta-feira, 23 de novembro de 2011

E-geladeira

Agora que o hardware aberto e a internet das coisas deixaram de ser coisa de mangá e passaram a fazer parte do cotidiano, algumas tecnologias de convergência parecem ter finalmente saído da fase de protótipo para entrar no mercado.
Isso não significa, naturalmente, que todas as novas tecnologias resistirão ao cruel darwinismo digital. Não é de hoje que a TV tenta criar, sem sucesso, experiências interativas através de redes telefônicas, satélites e cabos diversos. Ainda não é possível prever se a experiência de buscar um vídeo no YouTube ou consultar uma informação tão pessoal quanto um home banking, loja online ou perfil do Facebook a partir de um ambiente público feito a TV da sala vingarão, nem se um rádio online será comercialmente viável em um carro em movimento --ou mesmo que vantagens essas novas formas de comunicação terão sobre as tecnologias que pretendem substituir. O certo é que, como na virada do século, em que a banda larga era uma novidade controversa e não se imaginavam Twitters e Facebooks, estamos às margens de outra tsunami de novidades tecnológicas com grande poder transformador e resultados imprevisíveis.
É possível, no entanto, imaginar alguns produtos que, como o videocassete, o DVD e o Walkman, reunam tecnologias conhecidas para criar uma inovação sem precedentes. A internet, por exemplo, pode levar novas formas de interação a aparelhos conhecidos que, embora bastante úteis, mudaram pouquíssimo desde que foram inventados.
Um bom exemplo é a geladeira. Chamada de Kühlschrank em alemão, o que quer dizer, muito apropriadamente, um "armário frio", este eletrodoméstico sofreu pouquíssimas modificações de projeto desde sua invenção, no início do século 18. O descongelamento automático, o freezer separado do conjunto e a questionável torneira de água e gelo do lado de fora da porta são bem pouco para mais de trezentos anos de existência. Mesmo assim, quase não há insatisfeitos com o trambolho que têm em suas cozinhas, e são raros aqueles capazes de imaginar versões alternativas. A tal ponto de geladeiras que tenham quatro ou mais compartimentos de refrigeração (além, é claro, da fatídica torneirinha) sejam consideradas modernérrimas. Conectá-las à internet parece um Frankenstein geek, coisa de nerd. E é, pelo menos por enquanto.
Geladeiras on-line são uma piada tão velha quanto a web, já que não faz o menor sentido acessar um e-mail a partir delas. Mas é possível usá-las para outros fins a partir de tecnologias bastante conhecidas hoje. Para fazer um exercício criativo, consideremos a convergência de redes sociais, análise de métricas, supermercados e RFID. Se o último termo é estranho para você, pense nele como um pequeno chip, muito barato, que emite um sinal de rádio, individual como um código de barras, identificável por antenas especiais. E conecte sua geladeira convergente à rede.
Agora avance algumas décadas no tempo e conheça um possível refrigerador usado por aqueles que serão um dia seus netos. Ele deverá ser parecidíssimo com o seu. Talvez tenha algumas portas a mais, talvez mantenha a torneirinha, pouco importa. Sua diferença estará nas antenas internas, no cabo de conexão e no tamanho. Ele será oferecido em vários formatos, a maioria bem menor do que os utilizados hoje.
O eletrodoméstico, pouco importa seu tamanho e funcionalidade, deverá ser gratuito, oferecido como parte do contrato de fornecimento estabelecido entre seu usuário e o fornecedor de alimentos. Precisará ser instalado e configurado, e passará por um processo de aprendizado em que se adaptará aos hábitos de consumo da casa, integrando-os a outras informações de uso de cartão de crédito e hábitos diários. Ao final do período de adaptação, o modelo genérico deverá ser substituído por outro, menor, adaptado às necessidades mensuradas pelo sistema e recomendadas como adequadas para todos. A mensalidade garantirá o abastecimento básico, mas poderá ser facilmente expandida para módulos de dietas, experiências gastronômicas, enfermidades, estações do ano, datas especiais e festas. Para estas últimas, uma geladeira adicional, já configurada para os hábitos e preferências dos convidados, poderá ser fornecida.
As embalagens de cada produto usado na geladeira serão automaticamente identificadas e poderão trocar de cor quando sua validade estiver próxima do vencimento. As receitas prontas e produtos in natura deverão ser armazenados em vasilhas que substituirão as centenárias embalagens Tupperware e Pyrex, e cujo conteúdo e data de validade, se não identificados, poderão ser fornecidos pelo usuário.
Fascinantes, assustadores e inevitáveis, os novos eletrodomésticos deverão coletar uma quantidade inimaginável de dados a respeito de seus "donos", a ponto de tornar a privacidade um mito distante, inadequado e desconfortável quanto a liberdade de escolha. No admirável mundo novo do mercado global, os inconformados serão, como sempre, classificados como selvagens bárbaros.
Como bem definiu o romancista japonês Haruki Murakami, é bem provável que a mais importante revelação histórica seja que "na época em que a novidade surgiu ninguém sabia o que estava por vir".

Luli Radfahrer

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