segunda-feira, 14 de novembro de 2011

"És apenas um ser mortal"

Lula da Silva padece de doença grave e os brasileiros foram informados a respeito. Com pormenores. Há quem não goste de tanta transparência. Há quem veja no ato um significado político qualquer busca de popularidade; maior influência no interior do partido; o relançamento de uma candidatura presidencial futura; etc.
Pessoalmente, aprecio a honestidade de Lula. Para começar, ela mostra a grande diferença entre a democracia e o autoritarismo. Essa diferença foi resumida pela revista "Veja", que no seu editorial comparou o caso de Lula com os patéticos casos de Fidel Castro ou Hugo Chávez.
De fato. Em Cuba ou na Venezuela, os cidadãos sabem pouco sobre a saúde dos seus próceres e a informação é manipulada para não espantar as manadas. Isso diz tudo sobre a forma como o poder político, nesses países, olha para os seus cidadãos: como crianças assustadiças e ignaras.
E, claro, também é revelador sobre o clima de medo e paranóia que reina entre as elites desses regimes.
Sempre assim foi. Em Espanha, as maleitas do caudilho Franco da mera diabetes à incapacitante Parkinson foram sucessivamente escondidas da população espanhola até ao limite dos limites, ou seja, até à instauração da democracia em 1975.
Na União Soviética, Stálin gostava tanto dos médicos que os prendia ou executava com regularidade quando sofreu o infarto fatal, esperou-se 12 horas até se chamar um profissional, não fosse o camarada recuperar entretanto e mandar fuzilar os seus assessores pelo abuso.
E, sobre Mao Tsé-Tung, a bipolaridade e a doença de Lou Gehrig que o matou (uma doença neurológica degenerativa) só foram conhecidas muito depois da chegada do seu sucessor, Deng Xiaoping, ao poder.
Mas a transparência de Lula não mostra apenas a diferença entre a democracia e o autoritarismo. Mostra também uma evolução no interior das próprias democracias que, vigiadas por um poder midiático crescente, foram abandonando o secretismo de outras eras.
David Owen, médico e antigo ministro britânico das Relações Exteriores, escreveu um livro notável sobre o assunto. Intitula-se "Na Doença e no Poder" (Lisboa: Dom Quixote, 503 págs.) e Owen não se limita apenas a analisar os casos clínicos dos regimes autoritários supracitados. O secretismo também existia nas democracias, conta ele.
Existem episódios caricatos e os Estados Unidos são terreno fértil. Em 1893, o presidente Cleveland foi operado a um câncer do maxilar a bordo de um iate no porto de Nova York.
Depois de removida parte do maxilar, Cleveland voltou ao trabalho e os americanos foram informados que o presidente apenas realizara tratamentos para aliviar as dores de dentes.
Mas é no século 20 que a dissimulação começa a ser extravagante. Que o digam os presidentes Roosevelt (Teddy e Franklin).
O primeiro gostava de praticar boxe para relaxar e, no calor de uma luta, ficou permanentemente cego de um olho (o esquerdo). Os americanos nunca souberam do acidente.
Nem do acidente de Teddy, nem da poliomielite de Franklin, que o jogou numa cadeira de rodas durante toda a sua vida pública. A maioria dos americanos desconhecia o fato e a própria Biblioteca Presidencial, esclarece David Owen, testemunha esse desconhecimento: das 35 mil fotos disponíveis no espólio, só 2 repito: duas mostram Roosevelt nessa condição.
Woodrow Wilson é outro caso: em 1919, um acidente vascular cerebral deixou-o incapacitado. Mas nem isso levou à sua substituição: o governo continuou, durante sete meses, sob comando firme da mulher de Wilson.
Findos os sete meses, o presidente regressou, razoavelmente recuperado, e a sra. Edith Wilson entregou-lhe as rédeas do poder. Ninguém precisava de saber de nada.
Não se pense, porém, que só nos Estados Unidos seria possível um arranjo desses. Na mesma altura, do outro lado do Atlântico, a sra. Deschanel fazia o mesmo pelo seu marido, o presidente francês Paul Deschanel.
Que o mesmo é dizer: enquanto o presidente sofria de síndrome de Elpenor (tradução: períodos de semiconsciência e desorientação espacial recorrentes), a mulher governava por ele.
A França, aliás, é um caso interessante de mendacidade absoluta quase até aos nossos dias. Desconheço se Sarkozy padece de alguma doença, com a exceção da megalomania evidente e dos complexos de inferioridade por causa da sua diminuta estatura (física).
Mas é espantoso que os franceses tenham vivido na ignorância sobre as depressões profundas do General De Gaulle; o câncer do sangue que matou Georges Pompidou; e o câncer da próstata que François Mitterrand conseguiu ocultar durante onze anos com a conivência do seu médico pessoal, que o tratava literalmente às escondidas (em aviões, quartos de hotel etc.).
Nada que se compare, verdade seja dita, ao maior ilusionista de todos: esse exemplo de saúde, juventude e vitalidade que dá pelo nome de John F. Kennedy.
Aos 43 anos, Kennedy era eleito para a Casa Branca. Mas, como explica David Owen, os americanos elegiam um homem incomparavelmente mais doente do que o secretário-geral da União Soviética Nikita Khrushchev (66 anos), o premiê britânico Harold Macmillan (idem) ou o chanceler alemão Konrad Adenauer (84 anos), seus pares da época.
Kennedy era o produto acabado de uma vida em hospitais: escarlatina aos 3 anos; colite aos 13 (e tratamentos com cortisona durante a adolescência); dores crónicas nas costas depois de acidente de viação em Harvard aos 21; úlcera do duodeno devido aos esteróides que tomava por causa das dores (o que também lhe provocou a osteoporose posterior); e, sobretudo, a doença de Addison uma falha auto-imune das glândulas supra-renais que exige terapia de substituição hormonal durante a vida inteira.
Sim, a transparência de Lula sobre o seu câncer na laringe é prova da maturidade democrática do Brasil. Mas é também uma importante lembrança sobre a fragilidade e contingência de todas as vidas humanas: grandes ou pequenas, públicas ou anónimas.
Os nossos antepassados sabiam disso. E não era por acaso que o imperador e filósofo Marco Aurélio, quando cruzava as ruas de Roma, tinha sempre um escravo a seu lado que lhe segredava repetidamente ao ouvido: "És apenas um ser mortal." A frase acabava com qualquer vaidade.
As democracias serão lugares mais habitáveis se governantes e governados nunca se esquecerem dessa lição.

João Pereira Coutinho

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