sábado, 29 de janeiro de 2011

Uma Europa particular

O discurso do presidente Obama sobre o Estado da União não foi muito inspirador. Mas a resposta oficial do Partido Republicano, apresentada pelo deputado Paul Ryan, foi realmente interessante. E não o afirmo como elogio.
Ryan fez afirmações extremamente dúbias quanto a empregos, saúde e outros assuntos. Mas o que atraiu mais minha atenção, ao ler a transcrição de seu discurso, foi o que ele teve a dizer sobre outros países. "Vejam o que está acontecendo a países como Grécia, Irlanda, Reino Unido e outras nações europeias.
"Demoraram demais a agir, e agora seus governos se viram forçados a impor dolorosas medidas de austeridade: grandes cortes de benefícios para os idosos e fortes aumentos de impostos para todos."
A história é boa. Os europeus vacilaram quanto aos deficit, e isso conduziu a uma crise. Infelizmente, embora a afirmação seja ao menos em parte procedente com relação à Grécia, não foi nada disso que aconteceu na Irlanda ou Reino Unido, países cujas experiências de fato refutam a atual narrativa republicana.
Mas o fato é que os conservadores norte-americanos há muito têm uma Europa particular em suas imaginações -- uma região de economia estagnada e serviços de saúde terríveis, uma sociedade em colapso sob o peso do governo grande. O fato de que a Europa não seja nada disso -- vocês sabiam que, na Europa, a probabilidade de que um adulto em seus anos produtivos esteja empregado é superior à dos Estados Unidos? -- nunca os impediu de dizer o que dizem. Portanto, não deveríamos nos surpreender com as patranhas semelhantes que contam sobre os problemas europeus de dívida.
Vamos falar sobre o que realmente aconteceu na Irlanda e no Reino Unido.
Às vésperas da crise financeira, os conservadores só tinham elogios à Irlanda, um país de baixa tributação e baixos gastos públicos, pelos padrões europeus. O Índice de Liberdade Econômica da Heritage Foundation atribuía à Irlanda posição superior ao de qualquer outra nação ocidental. Em 2006, George Osborne, hoje secretário das Finanças britânico, declarou a Irlanda "um exemplo reluzente da arte do possível em termos de política econômica de longo prazo". E a verdade era que, em 2006/2007, a Irlanda operava com superavit orçamentário e tinha um dos mais baixos níveis de dívida entre os países avançados.
O que aconteceu de errado, então? A resposta é que os bancos irlandeses se descontrolaram nos anos de prosperidade, criando uma imensa bolha imobiliária. Quando a bolha estourou, a arrecadação do governo despencou, causando uma disparada no deficit, enquanto a dívida pública também explodia porque o governo assumiu as dívidas dos bancos. E os severos cortes de custos, embora tenham conduzido a uma imensa perda de empregos, não foram capazes de restaurar a confiança.
A lição da derrocada irlandesa, portanto, é o exato oposto do que Ryan gostaria que acreditássemos. Não é um caso de "cortem os gastos agora ou coisas ruins acontecerão', e sim um caso de que orçamentos balanceados não servem de proteção a um país que não regulamente seus bancos de maneira efetiva -- um argumento exposto com clareza no recente relatório da Comissão de Inquérito sobre a Crise Financeira, a qual conclui que "30 anos de desregulamentação e de aposta na autorregulamentação" ajudaram a criar a nossa catástrofe. Eu me lembrei de mencionar que os republicanos estão fazendo tudo que podem para solapar a reforma financeira?
E quanto ao Reino Unido? Bem, ao contrário do que Ryan parece ter dado a entender, o Reino Unido na verdade não sofreu uma crise de dívida. É fato que David Cameron, que se tornou primeiro-ministro em maio, reverteu a política econômica em direção da austeridade fiscal. Mas isso aconteceu por escolha, e não em resposta a pressões de mercado.
E a base dessa escolha é a adesão do novo governo britânico à mesma teoria proposta pelos republicanos -- a alegação de que reduzir os gastos do governo quando a economia está deprimida na verdade ajudará o crescimento, em lugar de prejudicá-lo.
E que forma essa teoria está tomando quando aplicada na prática? Uma forma não muito agradável. A economia britânica, que parecia estar se recuperando no começo de 2010, voltou a apontar queda no quarto trimestre. Sim, o clima influenciou, e não, não devemos confiar demais em resultados referentes a um único trimestre. Mas certamente não existem sinais da alta na confiança do setor privado que supostamente deveria compensar a demissão de meio milhão de funcionários do governo. E, como resultado, a experiência britânica não oferece sustentação às alegações republicanas de que os Estados Unidos precisam cortar seus gastos para enfrentar seu imenso desemprego.
O que me conduz de volta a Paul Ryan e sua resposta ao presidente Obama. Vale repetir que os conservadores norte-americanos há muito empregam o mito de uma Europa fracassada para argumentar contra a aplicação de políticas progressistas nos Estados Unidos. Mais recentemente, tentaram aproveitar os problemas de dívida da Europa para beneficiar sua agenda, ainda que os fatos europeus apontem na direção oposta.
Mas Ryan costuma ser retratado como um dos líderes intelectuais do Partido Republicano, e como especialista em assuntos de dívida e deficit. Por isso, a revelação de que ele literalmente nada sabe sobre as crises de dívida em curso no momento é, como eu disse, interessante -- e não de modo positivo.

Paul Krugman

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