quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

As proteínas salvadoras do Dr. Hecht

Posso ter deixado escapar, mas não vi em lugar nenhum da imprensa brasileira, com o devido destaque, a notícia do ano em biologia: cientistas de Princeton (EUA) criaram 1 milhão de proteínas artificiais e conseguiram provar que algumas delas funcionam em organismos vivos. Melhor: demonstraram que elas podem salvar a vida de bactérias marcadas para morrer.
É um grande feito da biologia sintética, nova moda no campo das biotecnologias. Esse ramo de pesquisa se dedica a projetar e construir componentes e sistemas biológicos que não existem na natureza. Coisas como a bactéria "sintética" anunciada por Craig Venter em maio do ano passado, na realidade um carcaça de bactéria na qual se injetou todo um genoma (coleção de genes de uma espécie ou indivíduo) construído em laboratório.
A nova façanha, realizada pelo grupo de Michael Hecht, fez coisa diferente. Enquanto Venter se limitou, em grande parte, a copiar sequências de genes existentes na natureza, Hecht construiu DNA com conteúdo inteiramente inédito. Usou, no entanto, conhecimento acumulado por sua equipe para fazê-lo de modo que as proteínas resultantes se enovelassem de forma previsível e se tornassem funcionais.
Uma explicação se faz necessária neste ponto. Se você tem boas noções de biologia molecular, pode pular os próximos quatro parágrafos, em itálico.
Proteínas são moléculas que carregam o piano da vida. Não há organismo que não dependa delas para construir um corpo e realizar as funções que o mantêm vivo. Essas substâncias são compostas por arranjos sequenciais de subcomponentes chamados aminoácidos.
Existem 20 aminoácidos na natureza. Cada proteína tem sua identidade e função caracterizadas por um número deles, centenas ou milhares, arranjados numa certa ordem (sequência). A especificação dessa ordem se encontra no DNA (genes).
Organelas especiais da célula, chamadas ribossomos, conseguem traduzir a sequência de DNA em sequência de aminoácidos. Assim se fabricam as proteínas necessárias num determinado momento.
O "colar" de aminoácidos que sai do ribossomo, no entanto, só adquire sua função depois que a proteína começa a se enrolar sobre si mesma, obedecendo a certas afinidades eletroquímicas entre suas partes. É o processo de "enovelamento", no jargão dos biólogos moleculares (ou "folding", em inglês).
Agora, de volta ao assunto principal. Vale dizer, as proteínas milagrosas do Dr. Hecht e sua trupe de sintetizadores aminoácidos.
Eles partiram de uma constatação matemática trivial: a combinatória de 20 aminoácidos arranjados às centenas ou milhares resulta num número de proteínas possíveis muito maior do que se encontra na natureza. A espécie humana, por exemplo, emprega uma centena de milhares. O time de Princeton, sozinho, criou 1 milhão, e nada impede que venha a criar vários milhões.
A pergunta seguinte já era uma hipótese: Será que algumas das proteínas possíveis, mas não encontradas no mundo vivo, funcionaria tão bem quanto as naturais? Elas só não estão por aí porque a seleção natural não teve a chance de testá-las. Outras chegaram primeiro e deram conta do recado.
Uma analogia pode ajudar a entender o raciocínio de Hecht. Pense na disposição de teclas Qwerty inventado em 1873 pelo americano Christopher Latham Sholes. Adotada nas máquinas de escrever Remington, disseminou-se pelo mundo e até hoje predomina em computadores. Mesmo que alguém invente um teclado mais funcional, vai ser complicado substituir o Qwerty.
Para selecionar quais proteínas artificiais funcionariam, em meio ao milhão de sequências inventadas, a equipe de Princeton partiu para tentativa e erro. Contaram para isso com a ajuda de 27 cepas de bactérias "marcadas para morrer", mutantes que careciam de proteínas cruciais para sobreviver em determinadas condições de cultivo.
O passo seguinte foi testar as proteínas, uma por uma. Encontraram quatro capazes de salvar a vida das bactérias deficientes. (Quem quiser ou precisar de detalhes científicos pode encontrá-los no artigo que o grupo publicou no periódico científico "PloS One".)
"Isso nos diz que kit de peças moleculares para a vida não precisa se limitar às peças - genes e proteínas - que já existem na natureza", afirma Hecht em comunicado da universidade. "Nosso trabalho sugere que a construção de genomas artificiais capazes de sustentar vida celular pode estar ao nosso alcance."
Não vai demorar muito para alguém falar, em tom de reprovação, que eles estão brincando de Deus (sempre achei essa expressão tremendamente poética).
Por mim, tudo bem. Só vou começar a me preocupar quando esses caras da biologia sintética começarem de fato a produzir micro-organismos com funções escolhidas e quiserem liberá-las no ambiente.

Marcelo Leite

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