domingo, 16 de janeiro de 2011

Pregando para lobos

Tomo café da manhã, em geral, com o jornal "El País" à mesa, porque, nessa hora, minha mulher está lendo a Folha e eu não sou louco de tomar o jornal dela.
A manchete da sexta-feira me choca: 'O melhor Obama surge do horror do Arizona'. A abertura do texto choca ainda mais: 'Barack Obama logrou o milagre de converter o sangue em esperança com seu discurso de quarta-feira em Tucson [Arizona], no qual lançou uma mensagem contra o ódio na política que definirá o resto de seu mandato'.
Depois, leio Andrea Murta, na Folha, e ela confirma, embora da forma sóbria que é mais adequada para tratar de discursos presidenciais (seja quem for o presidente), que a fala de Obama agradou até aos republicanos.
Foi, portanto, um sucesso de público. De crítica, nunca duvido que o seja porque se trata de um orador tremendamente hábil, brilhante mesmo, concordemos ou não com suas teses.
Sou, no entanto, obrigado a discordar desse consenso, ainda que seja sempre arriscado marchar com o passo errado.
Do meu ponto de vista, Obama era o homem certo, no lugar certo, com o discurso certo mas para o público errado.
Breve retrospectiva: o discurso foi motivado pelo tiroteio da semana passada em que Jared Lee Loughner, um jovem de 22 anos, feriu gravemente a deputada Gabrielle Giffords (democrata do Arizona) e matou seis pessoas, entre elas uma menina nascida no 11 de setembro (de 2001), o dia dos atentados às Torres Gêmeas de Nova York.
De imediato, surgiu a suposição de que a retórica incendiária usada pelo grupo ultra batizado de 'Tea Party' havia, no fundo, armado a mente e a mão de Jared. Afinal, a mais vistosa líder do grupo, Sarah Palin, que foi a candidata derrotada à vice-presidência em 2008, havia colocado Giffords como alvo, durante a campanha do ano passado para a eleição parlamentar.
Palin alega que o alvo deveria ser alvejado com votos, não com balas.
Mas, se não houvesse a suposição, Obama não teria ido ao Arizona. 'Serial killers' são uma espécie de tradição nos Estados Unidos e os presidentes de turno não se abalam a fazer discursos, históricos ou não, a cada um desses atentados.
É óbvio que não há como demonstrar o nexo entre a ação de Loughner e a retórica do 'Tea Party'. Mas, haja ou não, o discurso de Obama não serve para comover os fanáticos.
Pode, sim, ter convencido a parte democrata do país, o que, de resto, nem era necessário. Pode ter convencido também a fatia republicana digamos normal. Mas o 'Tea Party' é um grupo de fanáticos que espalha, frequentemente, a falsa tese de que Obama não é americano nem cristão, mas muçulmano.
Como acreditar, pois, em um discurso que é uma pregação de valores cristãos?
Digamos que não haja mesmo o tal nexo e que Loughner não passe de um lunático, desses que acreditam realmente que o governo dos Estados Unidos (seja qual for) conspira contra os cidadãos.
As teorias conspiratórias contra o governo que parecem ter parcialmente inspirado Loughner têm longa tradição nos Estados Unidos. Teorias conspiratórias podem ser um fenômeno globalizado, mas a paranoia particular de Loughner é puramente americana', escreve Kathryn Olmsted, professora de História da Universidade da Califórnia, em Davis.
Não são discursos presidenciais, por brilhantes que sejam, que mudam esse tipo de mente atormentada.
A professora Olsmsted acrescenta que essa paranoia pode ter sido exacerbada pelo ambiente em que vive Loughner. O Arizona 'é um Estado politicamente polarizado, no qual políticas do governo federal, da saúde à imigração, foram descritas por políticos das correntes principais como uma conspiração tirânica contra a liberdade'.
Se é assim - e parece ser - o discurso pacificador de Obama tende a ser encarado como mais uma peça no complô, por absurdo que pareça a mentes normais.
Em resumo, Obama pregou para os conversos, quando o alvo, de resto inatingível, eram os lobos que ajudam a disseminar essas ou outras paranóias.

Clóvis Rossi

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