quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Entre Wall Street e a Idade da Pedra

A pedidos, comento as manifestações da família do "Ocupe Wall Street" que estão se espalhando pelo mundo. Acredito que elas podem ser úteis, enquanto ajudarem governos esclarecidos a impor uma regulação mais sábia sobre os mercados financeiros. Não é preciso ter pós-graduação em economia pelo Instituto Lênin para reconhecer que, em determinados setores, o Estado precisa criar mecanismos que moderem os apetites de agentes privados, sob pena de produzir megaconfusões como a crise de 2008, cujas consequências o planeta amarga até hoje.
Outro ponto interessante é que esse tipo de movimento, à medida em que lança legiões de jovens numa reflexão sobre o papel das instituições, contribui para arejar e até mesmo desfossilizar a ação política. É em ocasiões como essas que demandas das próximas gerações são incorporadas ao "Zeitgeist", o horizonte de preocupações de uma época.
Isso dito, passo ao que há de preocupante nesses protestos. Eles se sustentam em algumas das forças mais retrógradas da psique humana, que, no passado remoto e recente, coadjuvaram em vários tipos de massacres e genocídios.
Prossigamos com vagar e cuidado, começando pelas noções intuitivas de economia que estão na base das manifestações. Nossos cérebros foram moldados para operar no paleolítico. Ali, as trocas, quando havia, eram todas na base do olho por olho, dente por dente, isto é, um bem concreto, como, digamos, uma caverna confortável por uma mulher, ou uma vaca e três galinhas ou outros produtos e serviços bastante concretos. Nossa psicologia tem dificuldade para lidar com as abstrações matemáticas envolvidas na economia moderna, como dinheiro, lucro, juros, para não mencionar verdadeiros desafios lógicos, como o mercado de derivativos e as alavancagens financeiras.
O resultado é que não temos nenhuma dificuldade para ver operários, artesãos e fazendeiros como produtores de valor. Eles, afinal, transformam coisas de menor valor em alimentos ou objetos dos quais temos necessidade para sobreviver.
O mesmo não se aplica a comerciantes e outros intermediários, aos quais chamamos pejorativamente de "atravessadores" como se a logística de levar produtos das fábricas e hortas para as gôndolas dos supermercados não valesse nada.
Em pior situação ainda estão os pobres banqueiros (nunca achei que utilizaria o adjetivo ªpobresº para qualificar o substantivo ªbanqueirosº, mas para tudo há uma primeira vez). Para nossos cérebros pré-históricos, emprestar dinheiro a juros é muito mais uma exploração do que um serviço. Quase nunca nos vem à mente que os níveis historicamente extraordinários de riqueza global de que hoje desfrutamos, que podem ser medidos em termos de calorias por habitante e até de expectativa de vida, só se tornaram possíveis graças ao comércio e aos mecanismos financeiros.
E, como mostra o psicólogo evolutivo Steven Pinker no recém-lançado "The Better Angels of Our Nature: Why Violence Has Declined" (os melhores anjos de nossa natureza: por que a violência diminuiu), essa indisposição quase neurológica para com intermediários tem complexas implicações sociais.
(A propósito, este novo livro de Pinker é uma das obras mais estimulantes obras que li nos últimos anos. Ainda estou na metade do catatau de quase mil páginas. Prometo uma resenha mais substanciosa assim que terminá-lo).
É muito fácil, diz Pinker, transferir a antipatia em relação a um comerciante ou banqueiro em particular para um grupo étnico. Essas atividades não exigem a possessão de terra ou fábricas. Elas dependem principalmente de conhecimento, que é algo que pode ser passado com certa facilidade para familiares e amigos. Igualmente importante, a expertise é portátil. Essas características fizeram com que alguns grupos étnicos se especializassem em atividades intermediárias, mudando-se para comunidades que delas tinham necessidade. Logo, tornaram-se minorias prósperas, virando alvo de inveja e ressentimento.
Não é uma coincidência que esses grupos tenham sido vítimas preferenciais de discriminação, expulsões e mesmo genocídio. O caso dos judeus na Europa é bem conhecido, mas está longe de ser o único. Também experimentaram perseguições os indianos no leste da África e na Oceania, os armênios na Turquia, os ibos na Nigéria, os chineses na Indonésia, Malásia e Vietnã, e várias minorias burguesas na União Soviética, na China e no Camboja.
Mais do que acidentes históricos, as agressões a que esses e outros grupos foram submetidos têm raízes em nosso essencialismo, sustenta Pinker. Intuições econômicas fora de lugar nos fazem ver comerciantes e banqueiros como aproveitadores. Muitas vezes, apenas pensar em pessoas enriquecendo à custa de outras já produz em nossos cérebros a emoção do desgosto. Mas é porque temos a tendência de procurar uma natureza secreta por trás das coisas (o essencialismo) que rapidamente estendemos a sensação de aversão originada por um intermediário em particular a todos os demais membros da categoria, que por acaso equivale a um grupo étnico. Também por uma operação de generalização, o desgosto é elevado do plano físico para o moral.
Ditadores e todos aqueles interessados em perseguir uma minoria raramente têm dificuldade em fazer com que a população passe a ver o alvo como uma categoria moralmente diferenciada, sempre descrita através de metáforas que evocam a emoção do desgosto: ratos, insetos, piolhos, predadores, vermes, sanguessugas, parasitas, baratas são alguns dos termos historicamente utilizados para referir-se aos membros do grupo perseguido.
Só que, como nota Pinker, grupos étnicos rivais podem passar décadas ou mesmo séculos desconfiando um do outro sem se matar, ou ao menos sem fazê-lo em larga escala. Para transformar a competição em um grande genocídio é preciso trazer mais um elemento: a ideologia, que pode assumir roupagens religiosas, políticas, nacionalistas ou ainda uma mistura disso tudo.
A ideologia nesse sentido amplo opera como um gatilho porque ela introduz a noção de utopia, a ideia de uma sociedade perfeita ou quase onde todos serão infinitamente felizes, seja no outro mundo, no paraíso socialista ou no Reich de mil anos. Passa a valer, então, o cálculo utilitarista. Se é uma minoria que se põe no caminho entre o aqui e a perfeição absoluta, torna-se lícito eliminar os representantes desse grupo. Em alguns casos, notadamente no universo religioso, essa licitude vira até um imperativo moral: manda-se o herege para a fogueira para salvar-lhe a alma imortal.
Nada indica que os estudantes acampados em Wall Street sairão por aí queimando banqueiros ou os enforcando nas tripas de comerciantes. Por enquanto, vale a avaliação inicial de que esses movimentos mais contribuem com as democracias do que as desestabilizam. Mas, antes de aplaudi-los e apoiá-los incondicionalmente, é bom ter em mente que eles também exprimem forças profundamente reacionárias de nosso psiquismo. A depender delas, prevaleceria um igualitarismo primitivo baseado no escambo e na aversão às tecnologias. Em suma, ainda estaríamos na Idade da Pedra.

Hélio Schwartsman

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