terça-feira, 22 de março de 2011

Cinema inacessível

A cinematografia "de arte" recente de Portugal, Inglaterra e Espanha simplesmente não chega ao Brasil. Gostaria de entender a lógica dos distribuidores acostumados a trazer filmes europeus para serem exibidos aqui, que preferem comédias de segundo escalão francesas ou italianas a trazer as películas premiadas em festivais importantes ou simplesmente bem cotadas desses países.
O caso da Espanha talvez seja o mais grave. O pobre frequentador médio de cinema daqui saberá apenas quem é Almodóvar, Penélope Cruz e Javier Bardem, e mesmo estes porque passaram pelo reconhecimento do circuito norte-americano. Nomes como os dos diretores Álex de la Iglesia ou Icíar Bollaín são praticamente desconhecidos e grandes vencedores dos prêmios Goya (o Oscar espanhol), como "La Soledad" (Jaime Rosales) e "Celda 211" (Daniel Monzón) nunca chegaram às telas brasileiras.
O filme mais recente de Alejandro Amenábar ("Agora"), o mesmo diretor do aclamado thriller "Os Outros", deve sair direto em DVD. Também não tenho notícia de que "Balada Triste de Trompeta" (Álex de la Iglesia), que ganhou Leão de Prata em Veneza no ano passado esteja nos planos de algum distribuidor.
O mesmo destino, infelizmente, deve ter o catalão "Pa Negre" (pão negro), que acaba de receber nove prêmios Goya e tornou-se febre na Espanha. Quem tiver a sorte de viajar para algum país em que esteja em cartaz, não perca, pois as chances de vê-lo aqui são escassas.
O filme de Agustí Villaronga, baseado no romance homônimo de Emili Teixidor, se passa na Catalunha rural, logo após a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). O conflito que culminou com a chegada de Franco ao poder e ao início de um período ditatorial que durou até 1975, deixou o país dividido. Na pequena aldeia onde a ação se passa, vencedores e vencidos convivem em um atrito que se parece mais com uma guerra de clãs familiares e de classe do que propriamente de grupos políticos.
O protagonista é o garoto Andreu (Francesc Colomer), filho de Farriol (Roger Casamajor), um militante "rojo" (comunista), e de uma mãe severa, Florencia (Nora Navas). Os três têm uma vida semi-miserável, Florencia trabalha numa fábrica de tecelagem e o pai aparentemente parece preocupar-se apenas com política e sua criação de passarinhos.
Andreu presencia o resultado de um crime horrendo, um homem, seu filho e seu cavalo são atirados de um penhasco a cena é especialmente aflitiva. Em seu depoimento à polícia, o menino diz que acredita que o assassino é uma espécie de fantasma que ronda o imaginário do povoado. Mas o chefe da polícia local, um "nacional" (partidário de Franco), interpretado por Sergi López, vê no assassinato a oportunidade para, de algum modo, trancafiar Ferrol. O policial não só quer fazê-lo por conta de diferenças ideológicas, mas porque quer forçar Florencia a fazer sexo com ele.
O filme vai mostrando a perda da inocência de Andreu. Ele quer desvendar não só o crime, mas as verdadeiras atividades de seu pai e o passado de sua família. A mãe tenta apartá-lo da verdade, mandando-o morar com os primos, mas não adianta. O garoto está obstinado e conta com a ajuda de uma prima mais velha, que perdeu uma mão durante a guerra e é corajosa o suficiente para dizer coisas que Andreu parece precisar ouvir.
Ambos acabam descobrindo que o pai de Andreu participou de um terrível crime no passado, em que um homossexual do povoado foi castrado. A partir daí, o olhar ingênuo de Andreu para o mundo se transforma numa mirada raivosa, contra a família, contra os preconceitos e lendas da aldeia, contra "nacionales" e "rojos".
"Pa Negre" logra mostrar as consequências da guerra civil na Espanha rural sem tratar de questões políticas de modo direto. Até porque no interior do país o conflito se confundiu com as divisões sociais que já existiam há muito mais tempo. O título se refere ao único tipo de pão (negro, de menor qualidade) a que a família pobre e "comunista" de Andreu tinha acesso. O pão branco era dos vencedores.
Como tantos, lamento o fechamento do cine Belas Artes, em São Paulo. Mas a histeria coletiva criada em torno do espaço seria mais frutífera caso as pessoas se engajassem também para fazer com que filmes como este chegassem algum dia aqui.
Não basta termos boas salas de cinema, charmosas e bem localizadas. Se São Paulo quer mesmo ser uma cidade cosmopolita, capital cultural de um país em ascensão no mundo, deve abrir-se também para outros sons e imagens. O bom cinema recente espanhol é apenas um exemplo de tesouro a ser descoberto.

Sylvia Colombo

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