sexta-feira, 11 de maio de 2012

O cérebro racista

Conforme prometido, discuto hoje os últimos achados da psicologia evolutiva e da neurociência sobre o racismo. Apoio-me principalmente em "Incógnito: as Vidas Secretas do Cérebro", de David Eagleman, que acaba de ganhar uma edição brasileira, e no recém-lançado "Subliminal: How Your Unconscious Mind Rules Your Behavior" (subliminar: como a mente inconsciente controla o seu comportamento), de Leonard Mlodinov.
Imitando descaradamente Eagleman, começo sondando a mente de uma celebridade, Mel Gibson. No dia 28 de julho de 2006, o ator, que, por ter dirigido o filme "A Paixão de Cristo", com inegáveis tons antissemitas, já não gozava de muito boa reputação na comunidade judaica, foi preso por dirigir embriagado. Ele trafegava a 160 km/h (o limite ali era 80 km/h) e com uma alcoolemia de 0,12% (o limite na Califórnia é de 0,08%).
O que distingue esse episódio dos muitos outros casos de condução sob influência que pululam em Hollywood é que, ao ser abordado, Gibson começou a imprecar contra os judeus: "Os judeus são f.... Começaram todas as guerras mundiais". "Você é judeu?", perguntou para o policial James Mee, que era de fato um representante do autoproclamado povo eleito. A história vazou para um site de fofocas e foi um deus nos acuda.
No dia seguinte, ainda de ressaca, Gibson soltou uma nota em que falava de seu alcoolismo e pedia desculpas por seu comportamento. A comunidade judaica, mais especificamente a Liga Antidifamação, protestou porque o texto não fazia referência às observações antissemitas e, em resposta, o ator divulgou uma segunda nota em que fazia um "mea culpa" dirigido especialmente aos judeus.
O produtor Dean Devlin, que é judeu e muito amigo de Gibson (antes da bebedeira, ele passara a tarde na casa de Devlin), logo saiu em socorro do ator, afirmando que a forte amizade entre os dois era a prova de que não havia antissemitismo e atribuiu as desastradas declarações ao álcool.
A pergunta que não quer calar é: qual é o Gibson verdadeiro, o rematadamente racista, que se faz revelar quando o ator dá uns goles a mais, ou aquele que redigiu o pedido de desculpas e tem amigos judeus? E a resposta, um dos grandes achados da neurociência dos últimos anos, é que muito provavelmente não existe um "eu verdadeiro". Nossas mentes são um enorme concerto de diferentes facções cerebrais, que competem umas com as outras para obter o controle sobre o comportamento. Na imagem de Eagleman, o cérebro é uma democracia representativa, na qual diversos módulos, sistemas e circuitos podem ter opiniões divergentes sobre o mesmo tema. Vence quem, naquele momento, se mostra mais eloquente.
Embora o psicólogo polaco-britânico Henri Tajfel (1919-82) tenha sugerido já nos anos 70 que o racismo e os preconceitos em geral se manifestavam dessa forma multitudinária, na qual processos de categorização acabavam, por vezes inconscientemente, assumindo o controle do comportamento, pelo menos até o final dos anos 80 a visão dominante entre psicólogos era a de que a discriminação era um ato consciente e intencional.
Como mostra Mlodinov, o panorama começou a mudar a partir de 1988, quando pesquisadores da Universidade de Washington desenvolveram o hoje famoso IAT, sigla inglesa para Teste de Associação Implícita. Basicamente, ele nos revela e de forma mensurável quão preconceituosos somos.
A ideia do IAT é bastante simples. Considere a seguinte lista de palavras: João, Joana, irmão, neta, Beth, filha, Miguel, sobrinha, Ricardo, Leonardo, filho, tia, avô, Roberto, Cristina, pai, mãe, neto, Filipe, Sofia.
Agora a releia dizendo para si mesmo "olá" cada vez que encontrar um nome próprio ou de parentesco masculino e "adeus" quando as palavras forem femininas. É fácil, não é mesmo? Passemos à fase dois.
Agora, sua missão é voltar à lista e dizer "olá" para os nomes próprios masculinos e relações de parentesco femininas e "adeus" para nomes femininos e ligações familiares masculinas. Se você é uma pessoa normal, ficou bem mais difícil. O tempo para desempenhar a tarefa deve ter subido de algo como ½ segundo por palavra para ¾ de segundo.
O motivo é que, quando rotulamos cada palavra com o "olá" ou o "adeus", nós nos guiamos por nossas associações mentais. Quando elas não trazem desvios, tudo vai muito bem. Mas, quando estão embaralhadas, precisamos de mais tempo para ordená-las. Assim, medindo a diferença na velocidade da resposta entre as fases 1 e 2, cientistas são capazes de mensurar quão fortemente uma pessoa associa determinadas características com uma categoria social.
Troque as relações de parentesco masculinas e femininas pelas palavras relacionadas a ciência e artes respectivamente e teremos uma medida de quanto cada indivíduo se deixa levar por categorias de gênero, associando homens a atividades científicas e mulheres às artísticas.
Segundo Mlodinov, mais ou menos a metade do público testado dessa maneira em diferentes circunstâncias exibe um grau de moderado a forte de preconceito de gênero.
IATs não precisam se limitar a palavras. As séries podem ser compostas de imagens e mesmo imagens e palavras. Se utilizarmos fotos de pessoas brancas e negras e palavras negativas (mal, fracasso, terrível etc.) e positivas (paz, amor, felicidade, alegria etc.) teremos uma medida dos preconceitos raciais.
Trabalhos realizados primordialmente nos EUA revelam algo não muito bonito sobre o homem. Cerca de 70% das pessoas que fizeram testes desse tipo, incluindo negros, mostraram um viés pró-branco. Uma parte não desprezível dessas cobaias (estamos falando de ambientes universitários liberais) ficou sincera e genuinamente chocada ao descobrir que fazia associações racistas implícitas, ainda que, explicitamente, militasse conta o racismo.
Se você já fez o teste e caiu nessa categoria ou acha que pode cair, não fique chateado, pois está em boa companhia.
"Não sou nem nunca fui favorável a promover a igualdade social e política das raças branca e negra... há uma diferença física entre as raças branca e negra que, acredito, sempre impedirá as duas raças de viver juntas como iguais em termos sociais e políticos. E eu, como qualquer outro homem, sou a favor de que os brancos mantenham a posição de superioridade".
Horrível, não é mesmo? Bem, o autor da declaração não é ninguém menos que Abraham Lincoln, o presidente dos EUA que promoveu a Guerra de Secessão (1861-1865) para pôr um fim à escravidão no país. O Honesto Abe, como era conhecido, disse isso num debate em Charlestown, Illinois, em 1858.
E mesmo Lincoln não está só. Mlodinov também traz pérolas racistas do mahatma Gandhi e de Che Guevara. Por mais progressistas que eles fossem para o seu tempo, ainda eram prisioneiros de suas épocas e dos recônditos de suas mentes. De resto, é uma inovação cultural muito recente, e muito bem-vinda, a noção de que devemos pelo menos nos esforçar para julgar as pessoas segundo seus méritos ou deméritos pessoais, e não pelas categorias às quais pertencem.
Em termos neurológicos, ainda que o córtex pré-frontal, responsável pelas decisões racionais, esteja geralmente no comando, ele opera segundo informações inconscientes que recebe de outras partes do cérebro e muitas vezes se deixa levar por elas. Quem normalmente medeia essa troca de informações é uma estrutura chamada de córtex pré-frontal ventromedial (VMPC, na sigla inglesa). Ele parece gerir o tráfego entre as zonas reflexivas e o sistema límbico, que é o cérebro emocional. E, de fato, pessoas com lesões no VMPC perdem miraculosamente seus preconceitos. Elas perdem a capacidade de estereotipar.
Infelizmente, a operação traz alguns efeitos colaterais. A categorização está na base do racismo e de outros comportamentos moralmente questionáveis, como a xenofobia e as guerras nacionalistas ou de religião, mas é absolutamente essencial para a sobrevivência tanto do indivíduo como a espécie. Se não fôssemos capazes de agrupar os objetos e pessoas com os quais nos relacionamos de acordo com categorias, não teríamos conseguido transformar pedras em ferramentas e não reconheceríamos membros do clã rival como inimigos.
Até onde vai a ciência, a cor da pele é um detalhe sem muita significância, mas perceber pelas características físicas ou indumentárias se o sujeito que encontro no meio da savana pertence ou não ao meu bando e daí estimar as chances de ele agir com hostilidade foi vital no passado darwiniano. Nossos cérebros ainda conservam essa programação da Idade da Pedra num mundo em que só temos a perder discriminando.
A boa notícia é que, na sinfonia democrática que são nossas mente, nossos piores impulsos podem ser e com frequência são sobrepujados pela reflexão consciente, que emerge como regente. Por vezes, o maestro sucumbe às más influências de um trompetista bêbado. Pior, ele nunca deixa de ouvir às notas desafinadas dos demais membros da orquestra, que definem seu modo de conduzir. Ainda que não exista um Mel Gibson verdadeiro, a variante razoavelmente comportada e não escancaradamente antissemita pode estar no controle na maior parte do tempo.
Nossa estrutura cerebral parece apontar para um quadro no qual dificilmente conseguiremos eliminar todas as marcas do racismo e demais chauvinismos de nossa sociedade. Nesse contexto, as leis antidiscriminação, tendem a ser muito pouco efetivas. Elas partem do princípio errado de que manifestações e atitudes racistas são sempre um ato volitivo e, portanto, passível de punição. O caminho mais indicado, creio, é apostar menos no espalhafato judicial e mais no autocontrole, na razão e numa cultura virtuosamente antirracista. Isso já está acontecendo, do que dão prova a virtual abolição da escravidão uma das maiores realizações da civilização e a discussão em torno de cotas e outros meios de produzir sociedades mais justas.

 Hélio Schwartsman

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