terça-feira, 16 de novembro de 2010

Irlanda, de tigre celta a dominó no cassino

Mais um dominó europeu está para cair na crise que se iniciou em 2008, parecia superada no início deste ano, mas segue dando dores de cabeça no mundo rico.
O dominó da vez chama-se Eire ou Irlanda, simpática ilha de 4,5 milhões de habitantes, cuja história recente é também a história dos dramas do capitalismo contemporâneo.
A Irlanda foi durante um bom tempo o primo pobre da Comunidade Europeia. Claro que ser primo pobre de um entorno rico não é a mesma coisa que ser pobre na América Latina, por exemplo. Mas é sempre um problema.
De repente, a Irlanda explodiu, nos anos 90. Explodiu tanto que passou a ser chamada de "tigre celta", homenagem dupla: aos países asiáticos que tanto cresceram no mesmo período e às origens mais remotas de sua brava gente.
Entre 1995 e 2007, a economia irlandesa cresceu 6% ao ano, na média, superando todos os seus parceiros da zona euro.
Crescimento apoiado, principalmente, em um "boom" da construção civil, mas também em empresas de tecnologia da informação e medicamentos e em um setor financeiro ousado. Ousado demais, conforme logo se descobriria.
Veio a crise global de 2008 e o tigre celta nem gatinho mais conseguiu ser. A partir de então, a Irlanda sofreu o maior colapso do setor imobiliário entre todos os países desenvolvidos: o valor dos imóveis desabou entre 50% e 60%.
Consequência inescapável: os bancos, que haviam emprestado descuidadamente para construtoras e compradores, ficaram com um baita mico na mão. Consequência dois: o governo decidiu garantir a dívida de todas as suas instituições financeiras, que se acreditava inicialmente não ser tão grande. Era.
O mico passou para as mãos do governo e tem um tamanho aproximado de 40 bilhões de euros, o que faz parecer o rombo no PanAmericano uma coisa quase infantil.
Quebrada a construção, o país retrocedeu 3% em 2008, mais 8% no ano passado e caminha em 2010 para o terceiro ano consecutivo de retrocesso.
É assim que se chega ao dominó do momento: os mercados financeiros, sempre à procura de uma boa caça, desconfiaram que a dívida irlandesa não poderia ser paga. Afinal, o deficit fiscal saltou para 12% da produção econômica, em consequência da queda da arrecadação e dos estímulos que o governo deu para evitar que a recessão fosse ainda mais dramática.
Mas esse é o que os economistas chamam de deficit subjacente, ou seja, a diferença entre o que o governo gasta e o que arrecada. O deficit real agora é de 32% do PIB, algo inacreditável, por conta da estatização da dívida bancária, despesa que só ocorreu uma vez.
O governo promete reduzir o deficit a 3% até 2014, mas os mercados não perdoam e caem matando: na quinta-feira, cobravam para renovar títulos da dívida irlandesa absurdos 9%, mais de três vezes o parâmetro europeu, que são os 2 e poucos por cento cobrados da Alemanha.
Na sexta-feira e nesta segunda, caiu um pouco, mas ainda é insustentável.
Resultado: apelos do Banco Central Europeu e de países como Portugal para que a Irlanda resolva de uma vez pedir ajuda ao BCE na forma de um colchão de algo entre 60 e 70 bilhões de euros para que o mercado sinta que há cacife, sim, para honrar a dívida.
Claro que honrá-la significa cortar fundo nos gastos públicos. O governo já havia sido obrigado a capar 14,5 bilhões no início da crise e, agora, está para apresentar um novo Orçamento de austeridade com um corte levemente superior (15 bilhões de euros).
Em reportagem publicada domingo pelo jornal britânico "The Observer", Morgan Kelly, do University College de Dublin, a capital irlandesa, dizia que os cortes são um "exercício de futilidade". Explica: "Qual é a graça em rearranjar as cadeiras do gasto no deck do navio, se o iceberg das perdas dos bancos vai nos afundar de qualquer maneira?"
Kelly tornou-se famoso na Irlanda por ter sido o único a prever o colapso da construção civil quando todo mundo festejava a transformação da Irlanda no tal "tigre celta". Seu pessimismo de agora, portanto, tem respaldo na história mas também (e principalmente) no fato de que "pelos próximos seis a sete anos, cada centavo do imposto de renda pago pelos irlandeses irá para cobrir as perdas dos bancos", como diz a reportagem.
Já seria suficientemente trágico se fosse apenas um problema irlandês. Não é, como apontou nesta segunda-feira o ministro português de Finanças, Fernando Teixeira dos Santos: "Não estamos enfrentando apenas um problema de um país. É o problema da Grécia, de Portugal, da Irlanda".
Quer dizer o seguinte: o risco de contágio ronda de novo o euro mas não só o euro. A exposição dos bancos europeus na Irlanda é de 29 bilhões de euros, sendo 12,3 bilhões dos bancos alemães. Em Portugal, é ainda maior (43 bilhões de euros, sendo 10 bilhões dos alemães).
Se esses bancos ficarem com um mico desse tamanho, a secura de crédito, que ainda não foi totalmente sanada, volta com força e acaba batendo nas remotas praias brasileiras.

Clóvis Rossi

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