quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Ditadores que vão

Havia uma época em que eles existiam aos montes pela América Latina. Hoje, exceção feita ao regime que vigora em Cuba, felizmente eles não existem mais. Apesar de alguns arroubos autoritários de certos governos, a verdade é que o típico ditador latino-americano dos séculos 19 e 20, personagem que alimentou grandes obras da literatura e da não ficção da região (leia mais abaixo), desapareceu.
Nas últimas semanas, eventos trouxeram à lembrança dois deles. Apesar de ignoradas no Brasil, duas notícias trataram de acrescentar capítulos à amarga história dos ditadores da região.
Na Argentina, no último dia 8, morreu Emilio Eduardo Massera, aos 85 anos. O almirante, com os generais Jorge Rafael Videla e Orlando Ramón Agosti, formou a junta que tomou o poder após o golpe de Estado que derrubou a viúva de Perón, Maria Estela Martinez, em março de 1976.
Massera era o chefe da Armada, e portanto responsável por tudo o que se passava na temida ESMA (Escuela Mecánica de la Armada), um dos principais centros de detenção ilegal de prisioneiros políticos. Ali se deram roubos de bebês, torturas e mortes. De lá também partiram condenados a serem arremessados de aviões no Rio da Prata. Como se sabe, o regime militar argentino, que perdurou até 1983, deixou um saldo de 30 mil desaparecidos, segundo estimativas de grupos de direitos humanos.
Em 1985, durante o primeiro governo democrático pós-ditadura, o do presidente Raúl Alfonsín, Massera foi julgado e condenado a prisão perpétua por crimes contra a humanidade. Porém, recebeu indulto durante a gestão do peronista Carlos Menem, em 1990.
Voltou a ser processado, mas, em 2002, sofreu um derrame cerebral e foi declarado incapaz. Em 2005, já durante o governo do também peronista Néstor Kirchner (1950-2010), a Corte Suprema do país declarou anuladas as leis de Obediência Devida e Punto Final, e, em 2009, seu indulto foi declarado inconstitucional. Ou seja, Massera, mesmo sem ter consciência disso, morreu condenado.
Já na República Dominicana, o fantasma a voltar à tona foi o do ditador Rafael Leonidas Trujillo (1891-1961), que governou o país oficialmente entre 1930 e 1938 e depois entre 1942 e 1952, mas mantendo seu poder tirânico até sua morte, em 1961. A ditadura de Trujillo é conhecida como uma das mais sangrentas da América Latina.
Pois uma juiz acaba de determinar a proibição do lançamento de um livro de autoria de uma das filhas do ditador, "Trujillo, Mi Padre y Mi Memória", além de vetar também a abertura de uma filial da Fundação Rafael Leónidas Trujillo na República Dominicana.
A família acusa a justiça de estar agindo contra a liberdade de expressão e quer, além de lançar o livro e abrir o tal museu, repatriar os restos mortais de Trujillo, hoje na Espanha.
A ocasião é boa para lembrar alguns clássicos latino-americanos que refletem sobre esses períodos de trevas. Sobre Trujillo, justamente, o melhor romance já escrito é "A Festa do Bode" (Arx), de Mario Vargas Llosa (olha ele de novo), que reconstrói a era e o episódio de seu assassinato.
Sobre ditaduras na Argentina, um livro fundamental que acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras é "Operação Massacre", de Rodolfo Walsh. Este não é de ficção. Trata-se de uma longa reportagem sobre um assassinato de civis pela polícia em 1956, durante o governo do general Pedro Eugenio Aramburu.
A tradição de usar a literatura como meio de refletir sobre governos autoritários é já antiga na América Latina. Pode-se dizer que começou em 1851, com "Amalia", de José Marmol. O livro narra uma história de amor destruída por Juan Manuel de Rosas.
Mas essa prática se tornou comum mesmo ao longo do século 20, com a proliferação dos regimes ditatoriais e, paralelamente, da produção de nossos autores.
Em 1946, o guatemalteco e vencedor do prêmio Nobel, Miguel Angel Asturias, lançou "O Senhor Presidente", em que construiu um ditador inspirado na figura real do presidente Manuel Estrada Cabrera.
Nos anos 70, surgiram várias obras. "O Recurso do Método", de Alejo Carpentier, retrata um ditador caribenho fictício baseado em exemplos reais. "O Outono do Patriarca", de Gabriel García Marquez, acompanha a decadência de um líder. E "Eu, o Supremo", de Augusto Roa Bastos, narra a vida do ditador paraguaio José Gaspar de Francia, em forma de diário.
Em momentos em que alguns ditadores saem de cena por razões naturais, como Massera, ou voltam a ser discutidos, como Trujillo, vale evocar as letras para entender a história.

Sylvia Colombo

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