domingo, 10 de junho de 2012

Estrangeirismos

Uma língua estrangeira se mistura gradualmente ao modo de pensar, agir e falar contemporâneo. Em vez de fonemas e onomatopeias, ela se utiliza de gestos e imagens: é a linguagem dos mecanismos digitais, com suas janelas, barras de deslocamento e duplos-cliques. Ao contrário das outras línguas, ela não tem origem em um só lugar ou cultura, muda muito rápido e cresce vertiginosamente, transformando consigo a relação que se tinha com as máquinas e equipamentos e, através deles, com pessoas.
Até a Revolução Industrial as ferramentas eram razoavelmente simples. Por mais que fosse necessária uma grande habilidade para manejar bem um pincel ou formão, seu funcionamento era evidente. À medida que a tecnologia evoluiu, compreendê-la tornou-se mais difícil: as engrenagens do relógio e os pistões do motor já não se relacionavam diretamente com o resultado final de sua interação, o todo se diferenciava da soma de suas partes. A partir desse momento expressões até então inéditas, como campainhas, buzinas, arrancadas e freadas bruscas, foram incorporadas ao vocabulário.
O chip eletrônico virtualizou de vez as ferramentas. Enormes conjuntos de micro-disjuntores elétricos, os computadores, ao contrário das polias e roldanas, são máquinas enigmáticas, obscuras e silenciosas. Intangíveis, megabytes, teraflops e gigahertz não tem cor, forma ou cheiro e não podem ser percebidos a olho nu. Tudo o que se vê são as caixas-pretas que os armazenam, zumbindo misteriosas com seus infinitos LEDs e cabos. Eles realizam funções tão diversas e tão diferentes de seus componentes originais que se tornou impossível desmontá-los para decifrá-los. A única forma de entendê-los é através de uma estrutura simbólica complexa, uma linguagem que, dividida entre vários dialetos, é traduzida em telefones ocupados, programas que dão pau, vestimentas de avatares e tantas outras interfaces.
Com a internet, essa língua ganhou novas flexões e interações, tornando-se tão complexa e intercambiável que causa espanto lembrar que ela um dia foi inventada. Com ela, sutilezas inéditas ganham um tom coloquial. Mensagens de texto gritam quando MAIÚSCULAS, parênteses indicam expressões e ironias e até a natureza do conteúdo compartilhado passam a indicar origem e status. Não espanta que a "Orkutização" de redes e aplicativos gerem tantos debates entre diferenciadores e diferenciados.
A língua digital, em seu início, tomou emprestadas várias expressões do mundo físico. Como os limites e restrições ficaram invisíveis, era preciso criar analogias visuais (como a lata de lixo) e outras metáforas para indicar a seus operadores em que ponto estavam e o que precisava ser feito. Depois de mais de 30 anos de microinformática e quase duas décadas de Internet, a língua digital invadiu o mundo físico. Eletrodomésticos, televisores e câmaras fotográficas passaram a ter painéis de controle, animações e ícones que, compartilhados e utilizados em outras interações, criam com eles novos vocábulos. Até há pouco tempo, chacoalhar um celular ou deslizar o dedo sobre um vidro não faziam sentido. Hoje são termos corriqueiros.
A inclusão digital precisa ser encarada como alfabetização, não como técnica. Ela é uma forma híbrida de comunicação que, como o Português do Brasil ou o Inglês dos Estados Unidos, começou como um dialeto e se misturou progressivamente à língua que lhe deu origem, criando um ambiente novo e dinâmico, muitas vezes incompreensível para quem lhe é estrangeiro. Por enquanto sua interpretação é simples, mas no ritmo em que evolui, logo se tornará intraduzível. 

 Luli Radfahrer

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