quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Democracia, imprensa e viés eleitoral

A democracia não elimina o conflito entre diferentes facções políticas. Ela apenas procura discipliná-lo, de modo que a disputa pelo poder se resolva pela vias institucionais e não as de fato. De um modo geral funciona. Desde que a democracia foi restabelecida por aqui, em 1985, não assistimos a revoluções, golpes de Estado e outras modalidades de ruptura violenta. Um quarto de século não é muito, conceda-se. Mas, em alguns países, o período de estabilidade política proporcionado pela institucionalização das controvérsias pode chegar a vários séculos, como é o caso dos EUA e do Reino Unido e da Sereníssima San Marino, República fundada em 301 e cuja Constituição vigora desde 1600. É claro que normalidade política não é tudo, mas é uma condição no mais das vezes necessária para que um país consiga aliar desenvolvimento econômico com um regime de liberdades, o que, por seu turno, permite aos cidadãos que se dediquem a buscar a própria felicidade.
Quanto a essa polêmica toda em torno das supostas tendências liberticidas do governo Lula contra o presumido caráter golpista da mídia brasileira, eu diria que a grita faz parte do jogo. É um dos caminhos institucionais da disputa. Enquanto as divergências ficam no terreno da retórica, estamos atuando de acordo com as regras. Pode não ser muito bonito, mas não vejo aí nenhuma ameaça. A democracia, como eu já disse, não tem o dom de eliminar o conflito latente na sociedade. E isso, aliás, nem seria desejável.
A imprensa quer derrubar Lula? Difícil acreditar. Ao contrário do que os setores mais à direita previam em 2002, o país não só não foi tomado pelo caos com a vitória do dirigente petista como vai muito bem com ele no poder. Na economia e em várias outras áreas sensíveis, Lula mostrou-se tão ou mais conservador do que seus antecessores tucanos. As diferenças pequenas entre as propostas dos principais candidatos a sucedê-lo são um bom indício de que uma eventual deposição dos petistas, ainda que desejada por certos setores, não vale o risco de uma aventura golpista. É mais negócio esperar a próxima crise econômica, que abrirá uma excelente janela de oportunidade para a oposição. De resto, fazer acusações, xingar, propor "impeachment" (o PT pediu o afastamento de FHC), tudo isso é permitido pelo jogo.
E Lula pretende destruir a sociedade livre? Também me parece uma besteira. É fato que o presidente padece de incontinência verbal, o que invariavelmente o faz dizer coisas que deveria calar, mas, afora a paternal leniência para com aliados, aloprados e ditadores da estirpe de Ahmadinejad, Lula não tomou nenhuma medida de lesa-democracia. A principal "prova" apresentada pelos opositores é o Plano Nacional de Direitos Humanos 3, um decreto (sem força de lei) que elenca intenções do governo em áreas tão diversas como direitos de mulheres, crianças e populações indígenas, combate à tortura, à pobreza, ao racismo e às perseguições a minorias. Nessa extensa pauta, faz referências à "democratização" dos meios de comunicação. É um documento mais voltado à militância do que à base parlamentar, que, de resto, só teria algum efeito prático se convertido em projetos de lei específicos que fossem individualmente aprovados pelo Congresso.
No mais, todos os governos do mundo livre sempre tentam dar uma apertadinha na imprensa, que normalmente reage à altura. Nos regimes democráticos, tudo fica no reino do diz-que-diz e das pressões. É mais uma modalidade do jogo.
Cuidado. Não estou, com essas minhas observações, absolvendo Lula e o PT. Há fartos indícios de que petistas infringiram um bom número de artigos do Código Penal. Numa democracia mais madura, as consequências legais desses atos viriam em tempo hábil, provocando também repercussões políticas. A questão central, contudo, é que há uma diferença entre formar quadrilha, como a Procuradoria Geral da República descreve o "mensalão", e atentar contra a democracia. O PT parece envolvido até o pescoço no primeiro pecado, mas é inocente do segundo.
E isso nos leva à questão de fundo desta coluna: por que raios, quando o assunto é política, as pessoas param de pensar com a cabeça e reagem apenas emocionalmente? O problema, receio, é mais grave. Eu diria que a política é um dos poucos assuntos onde conseguimos perceber com alguma clareza que nossos cérebros são profundamente enviesados. Em outras áreas, nosso órgão executivo central também age segundo um sistema de preferências internas preestabelecidas, com base em emoções e intuições morais esculpidas por condicionamentos culturais, mas nós mal nos damos conta disso.
Quem resume bem a situação é Robert Wright, em "Animal Moral": "O cérebro é como um bom advogado: dado um conjunto de interesses a defender, ele se põe a convencer o mundo de sua correção lógica e moral, independentemente de ter qualquer uma das duas. Como um advogado, o cérebro humano quer vitória, não verdade; e, como um advogado, ele é muitas vezes mais admirável por sua habilidade do que por sua virtude".
Esse sistema está tão enraizado dentro de nós que, de acordo com o psicólogo Jonathan Haidt, depois que um juízo intuitivo foi proferido e reforçado por uma racionalização "post hoc" (o cérebro causídico), existem apenas quatro circunstâncias sob as quais esse juízo pode ser alterado. A primeira e a segunda têm mais a ver com interações sociais do que com pensamento propriamente dito. Elas são o efeito maria-vai-com-as-outras e a obediência a uma autoridade.
A força desses fenômenos já foi estabelecida em diversos experimentos psicológicos. Solomon Asch revelou como um indivíduo pode ser levado a dizer uma inverdade óbvia (o tamanho de diferentes objetos colocados à sua frente, por exemplo) se um bom número de pessoas (atores contratados) sustentar a mentira antes dele. Já Stanley Milgram, na célebre experiência que leva seu nome, mostrou que, quando recebiam ordens de cientistas (mesmo que sem muita ênfase), voluntários comuns eram capazes de desferir em outros seres humanos choques que acreditavam (falsamente) ser capazes de deixar graves sequelas.
As outras duas hipóteses levantadas por Haidt são mais promissoras para os amantes da razão. Ele as batizou de juízo racionalizado e reflexão privada. O problema é que só tendem a ocorrer quando a intuição moral inicial é muito fraca ou inexistente e a capacidade analítica do sujeito, forte. É só aí que o advogado pode sair de férias.
A razão está, então, condenada? Sim e não. A resposta depende de como a definimos. A ideia de que a escolha de um candidato a presidente (ou qualquer outra escolha que envolva maior conteúdo moral ou emocional do que decidir qual azeitona tirar da travessa) é resultado de uma reflexão que pesa prós e contras nos moldes preconizados pelos teóricos do Iluminismo fica de fato comprometida. A questão é que esse modelo jamais foi verdadeiro. Ele existia apenas nas cabeças dos "philosophes".
Como o neurologista português António Damásio mostrou, aquilo que chamamos de razão é resultado de complexos processos cerebrais catalisados por emoções. Sem elas, seria impossível até mesmo pensar. Como bem observa o neurocientista Michael Gazzaniga, autor de "Human: The Science Behind What Makes Your Brain Unique", esse rebaixamento do estatuto da razão talvez não seja uma má notícia. Afinal, se fôssemos todos 100% racionais o tempo todo, ninguém daria gorjeta num restaurante a que não pretende voltar e esposas abandonariam seus maridos doentes para ficar com um parceiro saudável. Num mundo perfeitamente racional, sempre vale a pena roubar a carteira do melhor amigo, se tivermos alguma garantia de que não seremos apanhados. São as emoções que possibilitam a moral e a ética.
O desafio diante de nós é aprender que nossos cérebros são máquinas de autoengano e, na medida das possibilidades, tentar nos precaver contra o erro. No mundo contemporâneo, pensar racionalmente às vezes vale a pena.

Hélio Schwartsman

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