A confirmação de que o julgamento do mensalão seguirá o modelo
preconizado pelo ministro Joaquim Barbosa deixou em polvorosa os
advogados dos réus. Não é difícil entender as razões. Submetido à
fórmula do relator, o processo ganha lógica, realça a tese de formação
de quadrilha e tonifica a hipótese de condenações em série.
Com pequenos ajustes, Barbosa refaz agora o desenho que esboçara em
agosto de 2007, quando o Supremo converteu a denúncia do menalão em ação
penal. Naquela ocasião, o relator subverteu a ordem da peça acusatória
da Procuradoria Geral da República. Abriu o seu voto pelo capítulo 5.
Por quê? Era nesse trecho que a denúncia do então procurador-geral
Antonio Fernando de Souza tratava da fonte do dinheiro que abastecera o
caixa clandestino do PT. Na sequência, Barbosa recuou para o capítulo 3,
no qual esmiuçavam-se os casos de desvio de verbas públicas.
Engenhoso, o ministro deixou por último os capítulos mais
controversos. Acomodou no final da fila o pedaço da denúncia que tratava
do chamado “núcleo político” da brigada do mensalão, aquele em que José
Dirceu e a cúpula do ex-PT foram acusados de formação de quadrilha.
Do modo como fatiou a denúncia, Barbosa favoreceu a compreensão do
escândalo. A apresentação do capítulo anterior como que iluminava os
meandros do capítulo subsequente. O relator obteve um êxito fulgurante.
Seu voto tinha 430 páginas. Em ponteiros corridos, o julgamento consumiu
36 horas. Em dias, foram cinco. Cada ministro votou 112 vezes. A
posição de Barbosa prevaleceu em todas as votações –em 96 delas por
unanimidade.
Concluída a análise da denúncia, foram ao banco dos réus todos os 40
acusados. Três saltaram para fora dos autos –um por morte, outro por
acordo e um terceiro, na semana passada, pelo reconhecimento de um erro
processual do STF. Sobraram 37. Agora, o voto de Barbosa ocupa cerca de
1.200 folhas. Iniciado em 2 de agosto, o julgamento deve invadir o mês
de setembro.
Ao inaugurar a leitura do novo voto, na quinta-feira (16), Barbosa
promoveu um ajuste sibilino. Dessa vez, escolheu para a abertura o
capítulo 3, aquele que trata do desvio de verbas públicas. Na fila de
2007, era o segundo item. Na sequência, virá o trecho que cuida da fonte
de recursos do mensalão, que era o primeiro na votação anterior. Inclui
os contratos do fundo Visanet, que o Banco do Brasil confiou às
agências de Marcos Valério.
A inversão não altera a lógica do voto relator. Novamente, Barbosa dá
prioridade às verbas. Esmiuçada a origem, virá a seguir a lavagem de
dinheiro atribuída a Marcos Valério e seus ex-sócios e aos ex-dirigentes
do Banco Rural. Depois, a imputação de gestão fraudulenta de
instituições financeiras, trecho em que estão incluídos os supostos
empréstimos contraídos pelo PT no Rural e no BMG.
Em seguida, serão julgados os crimes de corrupção passiva, formação
de quadrilha e lavagem de dinheiro de que são acusados os políticos dos
quatro partidos que receberam dinheiro do esquema. No item seguinte, a
lavagem de dinheiro que a Procuradoria acomoda sobre os ombros de
parlamentares do PT e de um ex-ministro de Lula: Anderson Adauto
(Transportes).
No penúltimo naco do voto de Barbosa aparecem Duda Mendonça e a sócia
dele, Zilmar Fernandes, que respondem por lavagem de dinheiro e evasão
de divisas. Só então sobrevirá o grand finale: o julgamento dos
três petistas acusados pela Procuradoria de formar a quadrilha: José
Dirceu, descrito como “chefe da organização criminosa”, e seus dois
“comparsas”: José Genoino e Delúbio Soares.
No encadeamento de Barbosa, a plateia vai recompondo aos pouquinhos o
papel de cada personagem na cena do escândalo. De um modo que, ao
final, torna-se difícil digerir o lero-lero segundo o qual o mensalão é
uma farsa e a quadrilha é uma lenda. Difícil também engolir a versão de
que a mula não teve cabeça.
“Os encontros entre Dirceu e a cúpula do Banco Rural reforçam a tese
de que o denunciado tudo sabia”, disse o Joaquim Barbosa de 2007. É
improvável que o relator de 2012 tenha mudado de opinião. Sobre o
esquema como um todo, o relator expressou-se assim há cinco anos:
“Os fatos são claríssimos. Membros de uma gremiação [PT] resolvem
distribuir recursos a membros de outras agremiações. Tratativas
acontecem e esses recursos são firmados sem registro. Se isso não
caracteriza formação de quadrilha, teremos muita dificuldade daqui para a
frente.”
O linguajar do relator destoa do juridiquês usualmente empregado no
Supremo. Barbosa é minucioso na descrição e direto na qualificação dos
crimes. A votação fatiada assusta os réus porque os outros ministros
terão de se pronunciar sobre cada capítulo sob a atmosfera aziaga
propiciada pelo estilo do relator.
Na sessão de quinta-feira, quando Barbosa pegou em lanças pela
manutenção do modelo fatiado, José Carlos Dias, advogado de Kátia
Rabello, a ex-presidente do Banco Rural, foi à tribuna para transmitir a
“perplexidade” dos defensores dos réus com “o risco de ver rompido o
caráter unitário desse julgamento.”
Revisor do processo, o ministro Ricardo Lewandowski, recorreu ao
regimento interno do Supremo para expressar a mesma preocupação. Citou o
artigo 135: “Concluído o debate oral, o presidente tomará os votos do
relator, do revisor e dos outros ministros, na ordem de antiguidade…”
Lewandowski arrematou: “Nao há no regimento nenhuma menção a
fatiamento.” No afã de se contrapor ao relator, o revisor não se deu
conta de que incorreu numa bobagem. O fatiamento não avilta a ordem.
Apenas altera a forma. O pronunciamento dos ministros se dará exatamente
como prescreve o regimento: primeiro o relator, depois o revisor, os
outros na sequência –dos mais novos para os mais antigos.
A única diferença é que, em homenagem ao bom senso, em vez de ocupar o
microfone uma única vez, cada ministro votará várias vezes.
Percebendo-se em minoria, Lewandowski teve de refluir. Na sessão de
segunda-feira, será convidado a dizer o que pensa sobre o primeiro
capítulo desfiado por Barbosa.
Nesse trecho, Barbosa condenou quatro réus. Entre eles o deputado
petista João Paulo Cunha (corrupção passiva, lavagem de dinheiro e
peculato) e Marcos Valério (corrupção ativa e peculato). O revisor pode
ter recolhido dos autos conclusões diversas. Melhor e mais prático que
as exponha logo –na lata, como se diz.
Falta agora definir o momento em que os réus eventualmente condenados
conhecerão o tamanho das respectivas penas. Se Barbosa for seguido
também nesse tópico, os castigos serão fixados apenas no final do
julgamento.
Blog do Josias
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