Uma língua estrangeira se mistura gradualmente ao modo de pensar, agir e
falar contemporâneo. Em vez de fonemas e onomatopeias, ela se utiliza
de gestos e imagens: é a linguagem dos mecanismos digitais, com suas
janelas, barras de deslocamento e duplos-cliques. Ao contrário das
outras línguas, ela não tem origem em um só lugar ou cultura, muda muito
rápido e cresce vertiginosamente, transformando consigo a relação que
se tinha com as máquinas e equipamentos e, através deles, com pessoas.
Até a Revolução Industrial as ferramentas eram razoavelmente simples.
Por mais que fosse necessária uma grande habilidade para manejar bem um
pincel ou formão, seu funcionamento era evidente. À medida que a
tecnologia evoluiu, compreendê-la tornou-se mais difícil: as engrenagens
do relógio e os pistões do motor já não se relacionavam diretamente com
o resultado final de sua interação, o todo se diferenciava da soma de
suas partes. A partir desse momento expressões até então inéditas, como
campainhas, buzinas, arrancadas e freadas bruscas, foram incorporadas ao
vocabulário.
O chip eletrônico virtualizou de vez as ferramentas. Enormes conjuntos
de micro-disjuntores elétricos, os computadores, ao contrário das polias
e roldanas, são máquinas enigmáticas, obscuras e silenciosas.
Intangíveis, megabytes, teraflops e gigahertz não tem cor, forma ou
cheiro e não podem ser percebidos a olho nu. Tudo o que se vê são as
caixas-pretas que os armazenam, zumbindo misteriosas com seus infinitos
LEDs e cabos. Eles realizam funções tão diversas e tão diferentes de
seus componentes originais que se tornou impossível desmontá-los para
decifrá-los. A única forma de entendê-los é através de uma estrutura
simbólica complexa, uma linguagem que, dividida entre vários dialetos, é
traduzida em telefones ocupados, programas que dão pau, vestimentas de
avatares e tantas outras interfaces.
Com a internet, essa língua ganhou novas flexões e interações,
tornando-se tão complexa e intercambiável que causa espanto lembrar que
ela um dia foi inventada. Com ela, sutilezas inéditas ganham um tom
coloquial. Mensagens de texto gritam quando MAIÚSCULAS, parênteses
indicam expressões e ironias e até a natureza do conteúdo compartilhado
passam a indicar origem e status. Não espanta que a "Orkutização" de
redes e aplicativos gerem tantos debates entre diferenciadores e
diferenciados.
A língua digital, em seu início, tomou emprestadas várias expressões do
mundo físico. Como os limites e restrições ficaram invisíveis, era
preciso criar analogias visuais (como a lata de lixo) e outras metáforas
para indicar a seus operadores em que ponto estavam e o que precisava
ser feito. Depois de mais de 30 anos de microinformática e quase duas
décadas de Internet, a língua digital invadiu o mundo físico.
Eletrodomésticos, televisores e câmaras fotográficas passaram a ter
painéis de controle, animações e ícones que, compartilhados e utilizados
em outras interações, criam com eles novos vocábulos. Até há pouco
tempo, chacoalhar um celular ou deslizar o dedo sobre um vidro não
faziam sentido. Hoje são termos corriqueiros.
A inclusão digital precisa ser encarada como alfabetização, não como
técnica. Ela é uma forma híbrida de comunicação que, como o Português do Brasil ou
o Inglês dos Estados Unidos, começou como um dialeto e se misturou
progressivamente à língua que lhe deu origem, criando um ambiente novo e
dinâmico, muitas vezes incompreensível para quem lhe é estrangeiro. Por
enquanto sua interpretação é simples, mas no ritmo em que evolui, logo
se tornará intraduzível.
Luli Radfahrer
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