O mundo é mesmo um imenso laboratório. Na terça-feira da semana passada, foi publicado na edição impressa da Folha o que talvez tenha sido o menos opinativo de meus textos
desde que assumi a coluna São Paulo, no ano passado. Era um comentário
sobre o embate entre o ministro do STF Gilmar Mendes e o ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva. Ali, procurei mostrar que, em termos
psicológicos, era perfeitamente possível que ambos estivessem sincera e
genuinamente convictos de estar com a razão, ainda que a razão nos assegure que as versões apresentadas por cada um deles não podem ser simultaneamente verdadeiras.
Os processos cerebrais envolvidos são os de sempre. A memória é um
registro menos do que imperfeito dos fatos que presenciamos. Cada vez
que nos "recordamos" de algo, a lembrança é modificada, ficando mais de
acordo com nossas preferências, gostos e, principalmente, interesses
políticos. Transcorrido um certo tempo, resta muito pouco do original em nossas memórias, em especial se as acessamos com frequência e em contextos marcadamente emocionais.
Assim, não é nenhuma surpresa que a memória de Mendes registre, hoje, o
episódio como uma tentativa de Lula de exercer pressão indevida sobre o
julgamento do mensalão, e,
na lembrança do ex-mandatário, tudo não tenha passado de um encontro, à
época cordial, em que alguns comentários fortuitos foram feitos. Se
esse modelo é correto, o líder petista deve ter ficado realmente pasmo
ao ler as declarações de Mendes.
Inadvertidamente, o terceiro personagem da história, o homem dos três
Poderes, Nelson Jobim, dá apoio à tese das transformações psicológicas
ao asseverar que não notou nenhum
tipo de beligerância entre os dois no encontro. É preciso um certo
tempo remoendo as lembranças para convertê-las em versões mais
explosivas.
Esses mecanismos são bem conhecidos dos sociólogos que estudam conflitos
interpessoais, notadamente os familiares. É nos diferentes pesos que
cada lado confere a uma mesma ação que se funda boa parte das desavenças
e, em casos extremos, agressões e homicídios. Até o espancador de
mulheres acha que foi provocado pela esposa antes surrá-la.
Para não dizer que o artigo era totalmente inopinativo, no finalzinho eu afirmei que Lula faria bem a sua biografia se se poupasse desse tipo de escaramuça.
O que me deixou admirado
foi que vários leitores me escreveram, recriminando-me por ser
demasiado petista (queixa dos oposicionistas, afinal, não condenei Lula)
e antipetista (reclamação dos governistas, já que não desanquei
Mendes).
O bonito aqui é que quase temos uma confirmação laboratorial de um outro
viés humano com importante impacto na política, na sociedade e,
especialmente, no jornalismo conhecido como Erro Fundamental de Atribuição, que doravante chamaremos de EFA.
O EFA é um conceito da psicologia social que diz basicamente que nós,
humanos, quando se trata de explicar comportamentos alheios, temos uma
tendência irresistível de superestimar causas disposicionais, como genes
e traços de personalidade, e subestimar elementos situacionais, isto é,
o contexto em que ocorreram. Um exemplo deixará as coisas mais claras.
Se minha mulher tropeça numa bola, vou dizer
que isso ocorreu porque ela é desatenta e descuidada. Se o mesmo
acontece comigo, a culpa é das crianças que deixaram a maldita bola no
meio da sala.
Quem primeiro identificou o
EFA foram os psicólogos Edward Jones e Victor Harris num hoje clássico
experimento realizado em 1967. Eles mandaram um punhado de voluntários
lerem uma série de textos, alguns contra, outros
a favor de Fidel Castro. Em seguida, pediram que as cobaias situassem
politicamente os autores dos artigos. Acreditando que cada escritor
havia escolhido sua posição livremente, disseram que os que haviam feito
matérias favoráveis a Castro tinham atitudes mais simpáticas ao líder
cubano --o que parece bastante razoável.
O pulo do gato é que, quando os voluntários foram informados de que a posição de cada autor havia sido decidida por cara ou coroa
e não por seus instintos ideológicos, continuaram insistindo que os que
haviam escrito artigos pró-Fidel eram mais favoráveis a ele do que os
que fizeram textos contrários ao dirigente. De alguma forma, as pessoas
se mostravam cegas para a realidade da situação (o sorteio como
definidor das posições) e perseveravam na hipótese, que se provou falsa, de que os papéis haviam sido estabelecidos por preferências inatas.
O experimento foi repetido em uma miríade de versões, sempre com
resultados semelhantes. Numa delas, observadores veem jogadores de
basquete com mesmo nível de talento fazendo arremessos. Metade deles
está numa quadra bem iluminada, a outra,
lançando sob o lusco-fusco. Como é óbvio, os representantes do primeiro
grupo têm melhor nível de acerto. Os observadores concluem que eles são
melhores, e nem as mais do que razoáveis explicações ambientais os
fazem mudar de ideia.
Com Lula e Mendes é a mesma coisa. Os que estão convictos de que o
ex-presidente é um farsante sem caráter acreditam que ele está sempre a
conspirar e mente em todas as ocasiões. Para eles, é evidente que Lula
chantageou o magistrado e o fato de eu não ter apontado essa "obviedade" em meu artigo original já significa que estou a serviço do governo.
Na outra
ponta, os entusiastas do ex-mandatário consideram que Mendes é um
tucano infiltrado no Supremo (ele foi indicado por FHC) e está tentando
criar uma cortina de fumaça para encobrir suas ligações com Cachoeira.
Deixar de mencionar esse "passado nebuloso" do juiz só se explica pelo
fato de eu ser um representante da imprensa golpista.
Em 24 anos de jornalismo, aprendi que, como as cobaias de Jones e Harris
e os observadores de arremessos, não adianta tentar convencer o leitor
de que as coisas que saem no jornal são muito mais fruto de minudências
interagindo com o acaso do que de legítimas conspirações. Embora o EFA e
suas inescapáveis conclusões essencialistas já tenham me chateado no
passado, hoje me divirto com elas. O mundo, como disse, é um imenso
laboratório.
Já que vários leitores não tão ligados a partidos me cobraram uma posição, aqui
vai ela. Se é para entrar no mérito do que aconteceu naquela sala, é
claro que o Lula foi vender o peixe dele e, em princípio, não há nada
de ilegal ou repreensível aí. Se chegou a
chantagear Gilmar, eu não sei. No pressuposto de que as duas versões
equidistem dos fatos, é muito provável que tenha feito insinuações
suficientemente ambíguas, que o ministro, à medida que as semanas se
sucederam, foi interpretando de forma cada vez mais estrita. Mesmo que
tivéssemos um filme do encontro, talvez não fosse possível fechar um
diagnóstico objetivo.
Agora que identificamos o EFA e vimos como ele opera, é preciso tentar
responder para que ele serve. E, como já ensinava o geneticista russo
Theodosius Dobzhansky, "nada em biologia faz sentido senão à luz da
evolução".
O EFA é útil porque opera como uma "válvula redutora" (a expressão é do
psicólogo Walter Mischel) que "cria e mantém a percepção de continuidade
mesmo quando observamos mudanças ininterruptas de comportamento".
Embora a tendência de reduzir comportamentos a uma questão de caráter
(nos outros,
não em nós mesmos) possa criar dificuldades na hora de emitir juízos
políticos e filosóficos imparciais, ela foi uma ferramenta bastante útil
no passado darwiniano, ao nos fazer navegar sem hesitação e com
segurança num ambiente cheio de perigos e intrigas sociais. Podíamos, é
claro, cometer injustiças ao julgar pessoas com base em impressões
apressadas e circunstanciais, mas é sempre preferível ser injusto a
tornar-se vítima de um ardil.
No fundo, o EFA é mais uma manifestação de um outro
e mais profundo viés humano, o essencialismo. Estamos sempre em busca
de uma natureza secreta das coisas. E isso é, ao mesmo tempo maldição e
bênção, pois,
se o essencialismo está na base de alguns de nossos piores momentos,
como o racismo e as superstições, também é a força que nos faz sair em
busca de realidades não evidentes, o impulso que produz as investigações
filosóficas e científicas.
Hélio Schwartsman
Nenhum comentário:
Postar um comentário