RIO DE JANEIRO - Morava em Copacabana, todas as manhãs ia à
praia, de chapéu e óculos escuros. Para cortar caminho, pegava a galeria
Menescal onde, numa loja de discos, um hi-fi, que estava na moda,
tocava "Que pena", sucesso de Jorge Benjor, que ainda era Jorge Ben, um
bom dueto com a voz quase juvenil da Gal Costa e contraponto perfeito de
Caetano Veloso.
Havia saído da prisão da Polícia do Exército (na rua Barão de Mesquita).
Meses antes, junto com sete amigos, havíamos dado uma vaia no
presidente Castelo Branco, que ia inaugurar uma conferência da OEA no
hotel Glória. Quando o marechal saltou do carro e começamos a vaia
prevista, não sei o que me deu. Gritei o mais alto que pude: "Filho da
puta!". Fomos presos.
Pois, naquela manhã, vinha eu da praia distraído, assoviando o "Que
pena", quando ouvi a freada de um carro um Aero Willys azul-marinho,
que passou raspando por mim graças à manobra do seu motorista. Senti o
vento deslocar no meu rosto e vi o motorista, irritado, gritar em minha
direção: "Filho da puta".
Apesar da rapidez do encontro, deu para ver a cólera do já então
ex-presidente Castelo Branco. Sua habilidade no volante salvara-me de um
atropelamento que podia ser fatal e dera-lhe um susto desgraçado. Ele
vinha em certa velocidade, evidente que não me reconheceu, nunca nos
tínhamos visto. No encontro do hotel Glória ele estava de costas. Além
disso, de óculos e chapéu, nem minha mãe me reconheceria.
De minha parte, considerei que conseguíramos empatar o jogo. Insulto por
insulto, ambos justificados. O ex-presidente morreu pouco depois, num
desastre de avião, sem saber que eu lhe devia, além da prisão num dos
mais sinistros porões da ditadura, a própria vida, um pouco sinistra.
Carlos Heitor Cony
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