Conforme prometido, discuto hoje os últimos achados da psicologia
evolutiva e da neurociência sobre o racismo. Apoio-me principalmente em
"Incógnito: as Vidas Secretas do Cérebro", de David Eagleman, que acaba
de ganhar uma edição brasileira,
e no recém-lançado "Subliminal: How Your Unconscious Mind Rules Your
Behavior" (subliminar: como a mente inconsciente controla o seu
comportamento), de Leonard Mlodinov.
Imitando descaradamente Eagleman, começo sondando a mente de uma
celebridade, Mel Gibson. No dia 28 de julho de 2006, o ator, que, por
ter dirigido o filme "A Paixão de Cristo", com inegáveis tons
antissemitas, já não gozava de muito boa reputação na comunidade
judaica, foi preso por dirigir embriagado. Ele trafegava a 160 km/h (o
limite ali era 80 km/h) e com uma alcoolemia de 0,12% (o limite na
Califórnia é de 0,08%).
O que distingue esse episódio dos muitos outros casos de condução sob
influência que pululam em Hollywood é que, ao ser abordado, Gibson
começou a imprecar contra os judeus: "Os judeus são f.... Começaram
todas as guerras mundiais". "Você é judeu?", perguntou para o policial
James Mee, que era de fato um representante do autoproclamado povo
eleito. A história vazou para um site de fofocas e foi um deus nos
acuda.
No dia seguinte, ainda de ressaca, Gibson soltou uma nota em que falava
de seu alcoolismo e pedia desculpas por seu comportamento. A comunidade
judaica, mais especificamente a Liga Antidifamação, protestou porque o
texto não fazia referência às observações antissemitas e, em resposta, o
ator divulgou uma segunda nota em que fazia um "mea culpa" dirigido
especialmente aos judeus.
O produtor Dean Devlin, que é judeu e muito amigo de Gibson (antes da
bebedeira, ele passara a tarde na casa de Devlin), logo saiu em socorro
do ator, afirmando que a forte amizade entre os dois era a prova de que
não havia antissemitismo e atribuiu as desastradas declarações ao
álcool.
A pergunta que não quer calar é: qual é o Gibson verdadeiro, o
rematadamente racista, que se faz revelar quando o ator dá uns goles a
mais, ou aquele que redigiu o pedido de desculpas e tem amigos judeus? E
a resposta, um dos grandes achados da neurociência dos últimos anos, é
que muito provavelmente não existe um "eu verdadeiro". Nossas mentes são
um enorme concerto de diferentes facções cerebrais, que competem umas
com as outras para obter o controle sobre o comportamento. Na imagem de
Eagleman, o cérebro é uma democracia representativa, na qual diversos
módulos, sistemas e circuitos podem ter opiniões divergentes sobre o
mesmo tema. Vence quem, naquele momento, se mostra mais eloquente.
Embora o psicólogo polaco-britânico Henri Tajfel (1919-82) tenha
sugerido já nos anos 70 que o racismo e os preconceitos em geral se
manifestavam dessa forma multitudinária, na qual processos de
categorização acabavam, por vezes inconscientemente, assumindo o
controle do comportamento, pelo menos até o final dos anos 80 a visão
dominante entre psicólogos era a de que a discriminação era um ato
consciente e intencional.
Como mostra Mlodinov, o panorama começou a mudar a partir de 1988,
quando pesquisadores da Universidade de Washington desenvolveram o hoje
famoso IAT, sigla inglesa para Teste de Associação Implícita.
Basicamente, ele nos revela e de forma mensurável quão
preconceituosos somos.
A ideia do IAT é bastante simples. Considere a seguinte lista de
palavras: João, Joana, irmão, neta, Beth, filha, Miguel, sobrinha,
Ricardo, Leonardo, filho, tia, avô, Roberto, Cristina, pai, mãe, neto,
Filipe, Sofia.
Agora a releia dizendo para si mesmo "olá" cada vez que encontrar um
nome próprio ou de parentesco masculino e "adeus" quando as palavras
forem femininas. É fácil, não é mesmo? Passemos à fase dois.
Agora, sua missão é voltar à lista e dizer "olá" para os nomes próprios
masculinos e relações de parentesco femininas e "adeus" para nomes
femininos e ligações familiares masculinas. Se você é uma pessoa normal,
ficou bem mais difícil. O tempo para desempenhar a tarefa deve ter
subido de algo como ½ segundo por palavra para ¾ de segundo.
O motivo é que, quando rotulamos cada palavra com o "olá" ou o "adeus",
nós nos guiamos por nossas associações mentais. Quando elas não trazem
desvios, tudo vai muito bem. Mas, quando estão embaralhadas, precisamos
de mais tempo para ordená-las. Assim, medindo a diferença na velocidade
da resposta entre as fases 1 e 2, cientistas são capazes de mensurar
quão fortemente uma pessoa associa determinadas características com uma
categoria social.
Troque as relações de parentesco masculinas e femininas pelas palavras
relacionadas a ciência e artes respectivamente e teremos uma medida de
quanto cada indivíduo se deixa levar por categorias de gênero,
associando homens a atividades científicas e mulheres às artísticas.
Segundo Mlodinov, mais ou menos a metade do público testado dessa
maneira em diferentes circunstâncias exibe um grau de moderado a forte
de preconceito de gênero.
IATs não precisam se limitar a palavras. As séries podem ser compostas
de imagens e mesmo imagens e palavras. Se utilizarmos fotos de pessoas
brancas e negras e palavras negativas (mal, fracasso, terrível etc.) e
positivas (paz, amor, felicidade, alegria etc.) teremos uma medida dos
preconceitos raciais.
Trabalhos realizados primordialmente nos EUA revelam algo não muito
bonito sobre o homem. Cerca de 70% das pessoas que fizeram testes desse
tipo, incluindo negros, mostraram um viés pró-branco. Uma parte não
desprezível dessas cobaias (estamos falando de ambientes universitários
liberais) ficou sincera e genuinamente chocada ao descobrir que fazia
associações racistas implícitas, ainda que, explicitamente, militasse
conta o racismo.
Se você já fez o teste e caiu nessa categoria ou acha que pode cair, não fique chateado, pois está em boa companhia.
"Não sou nem nunca fui favorável a promover a igualdade social e
política das raças branca e negra... há uma diferença física entre as
raças branca e negra que, acredito, sempre impedirá as duas raças de
viver juntas como iguais em termos sociais e políticos. E eu, como
qualquer outro homem, sou a favor de que os brancos mantenham a posição
de superioridade".
Horrível, não é mesmo? Bem, o autor da declaração não é ninguém menos
que Abraham Lincoln, o presidente dos EUA que promoveu a Guerra de
Secessão (1861-1865) para pôr um fim à escravidão no país. O Honesto
Abe, como era conhecido, disse isso num debate em Charlestown, Illinois,
em 1858.
E mesmo Lincoln não está só. Mlodinov também traz pérolas racistas do
mahatma Gandhi e de Che Guevara. Por mais progressistas que eles fossem
para o seu tempo, ainda eram prisioneiros de suas épocas e dos
recônditos de suas mentes. De resto, é uma inovação cultural muito
recente, e muito bem-vinda, a noção de que devemos pelo menos nos
esforçar para julgar as pessoas segundo seus méritos ou deméritos
pessoais, e não pelas categorias às quais pertencem.
Em termos neurológicos, ainda que o córtex pré-frontal, responsável
pelas decisões racionais, esteja geralmente no comando, ele opera
segundo informações inconscientes que recebe de outras partes do cérebro e muitas vezes se deixa levar por elas. Quem normalmente medeia essa
troca de informações é uma estrutura chamada de córtex pré-frontal
ventromedial (VMPC, na sigla inglesa). Ele parece gerir o tráfego entre
as zonas reflexivas e o sistema límbico, que é o cérebro emocional. E,
de fato, pessoas com lesões no VMPC perdem miraculosamente seus
preconceitos. Elas perdem a capacidade de estereotipar.
Infelizmente, a operação traz alguns efeitos colaterais. A categorização
está na base do racismo e de outros comportamentos moralmente
questionáveis, como a xenofobia e as guerras nacionalistas ou de
religião, mas é absolutamente essencial para a sobrevivência tanto do
indivíduo como a espécie. Se não fôssemos capazes de agrupar os objetos e
pessoas com os quais nos relacionamos de acordo com categorias, não
teríamos conseguido transformar pedras em ferramentas e não
reconheceríamos membros do clã rival como inimigos.
Até onde vai a ciência, a cor da pele é um detalhe sem muita
significância, mas perceber pelas características físicas ou
indumentárias se o sujeito que encontro no meio da savana pertence ou
não ao meu bando e daí estimar as chances de ele agir com hostilidade
foi vital no passado darwiniano. Nossos cérebros ainda conservam essa
programação da Idade da Pedra num mundo em que só temos a perder
discriminando.
A boa notícia é que, na sinfonia democrática que são nossas mente,
nossos piores impulsos podem ser e com frequência são sobrepujados pela
reflexão consciente, que emerge como regente. Por vezes, o maestro
sucumbe às más influências de um trompetista bêbado. Pior, ele nunca
deixa de ouvir às notas desafinadas dos demais membros da orquestra, que
definem seu modo de conduzir. Ainda que não exista um Mel Gibson
verdadeiro, a variante razoavelmente comportada e não escancaradamente
antissemita pode estar no controle na maior parte do tempo.
Nossa estrutura cerebral parece apontar para um quadro no qual
dificilmente conseguiremos eliminar todas as marcas do racismo e demais
chauvinismos de nossa sociedade. Nesse contexto, as leis
antidiscriminação, tendem a ser muito pouco efetivas. Elas partem do
princípio errado de que manifestações e atitudes racistas são sempre um
ato volitivo e, portanto, passível de punição. O caminho mais indicado,
creio, é apostar menos no espalhafato judicial e mais no autocontrole,
na razão e numa cultura virtuosamente antirracista. Isso já está
acontecendo, do que dão prova a virtual abolição da escravidão uma das
maiores realizações da civilização e a discussão em torno de cotas e
outros meios de produzir sociedades mais justas.
Hélio Schwartsman
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