terça-feira, 2 de agosto de 2011

O poder e a morte

Se as pesquisas estiverem certas e não houver uma virada de mesa, são grandes as chances de que os argentinos escolham, como próximo líder, entre a viúva de um ex-presidente morto e o filho de um ex-presidente morto.
Os dois principais candidatos para o pleito de outubro são Cristina Kirchner, atual mandatária, viúva de Néstor Kirchner (1950-2010), e Ricardo Alfonsín, filho de Raúl Alfonsín (1927-2009), primeiro presidente pós-ditadura.
A inusitada situação faz lembrar o longo histórico de uma relação curiosa entre os argentinos, o poder e a morte.
São vários os casos de líderes que perderam a vida e passaram para a categoria de lendas, capazes de arrebatar sentimentos e render votos a quem os toma como bandeira, mesmo muitos anos após suas mortes.
O exemplo mais célebre disso é o de Eva Perón, mulher do presidente Juan Domingo Perón (1895-1974). Idolatrada por suas benfeitorias sociais, Evita morreu aos 33 anos, de câncer, em 1952. Aliás, "morreu", não. De acordo com os peronistas, Evita "passou para a imortalidade".
Suas exéquias pararam Buenos Aires, e a história de seu corpo sem vida é cheia de peripécias.
Depois do golpe que derrubou Perón, em 1955, o cadáver de Evita embalsamado foi levado à Itália e enterrado com um nome falso. Só em 1971, foi devolvido a Perón quando este estava na Espanha. Enfim, ganhou sepultura definitiva em Buenos Aires após a morte do general.
Na semana passada, a peronista Cristina Kirchner inaugurou uma imensa imagem de Evita, no dia do 59o aniversário de sua "passagem à imortalidade". Inspirada no mural de Che Guevara no Ministério do Interior de Havana, a homenagem à mulher de Perón agora disputa com o famoso Obelisco da av. 9 de Julio a atenção de portenhos e visitantes.
Na fala de inauguração do "monumento", Cristina disse que desejava que a imagem de Evita fosse um "símbolo de unidade para superar velhas antinomias".
Também com um discurso sobre unidade e conciliação, Carlos Menem mandou buscar, em 1989, os restos do ditador Juan Manuel de Rosas (1793-1877), que morreu no exílio, na Inglaterra, para enterrá-los na Argentina. Rosas, cujo nome foi palavrão no país por muito tempo, hoje tem estátua e cédula com seu rosto estampado.
Voltando no tempo, vale lembrar o episódio da morte de Hipólito Yrigoyen (1852-1933), o fundador da União Cívica Radical.
Yrigoyen foi presidente por dois períodos, até ser deposto por um golpe militar em 1930. O general Félix Uriburu não só teve apoio de boa parte da sociedade como, após o golpe, uma turba invadiu e saqueou a casa de Yrigoyen, que acabou preso numa ilha no Rio da Prata.
Mesmo assim, três anos depois, quando morreu, Yrigoyen recebeu da população uma inesperada homenagem. Uma multidão acompanhou seu féretro pelas ruas da capital.
Transformou-se, assim, numa das figuras de referência dos chamados "radicais", hoje principais opositores dos peronistas.
O funeral de Perón, em 1974, também foi um drama a céu aberto. Seu caixão, carregado por um carro militar, foi acompanhado por uma massa, que chorava e empunhava bandeiras.
Quase tão surpreendente quanto o luto apaixonado pela morte de Yrigoyen foi a mobilização durante o enterro de Raúl Alfonsín.
Seu governo havia tido pontos positivos, como o julgamento dos militares. Porém, o final foi catastrófico, a inflação atingiu níveis escandalosos e as críticas foram ferozes. Alfonsin deixou o poder pela porta de trás, e entregou o cargo mais cedo para o sucessor, Menem.
Ainda assim, sua morte, em 2009, foi uma comoção nacional comparada pela imprensa da época à despedida de Perón.
Em outubro de 2010, Néstor Kirchner morreu de um repentino ataque do coração. Cristina o velou na Casa Rosada, e recebeu apoio de populares e militantes. Depois, seu corpo foi acompanhado até o aeroporto --Kirchner foi enterrado em Río Gallegos.
A ideia do líder que retorna aos braços do povo é muito forte entre os argentinos, com o exemplo de Perón, que voltou a ser presidente depois de longo exílio, a legitimá-la.
É também de retorno que fala a letra do candombe gravado por artistas em homenagem a Kirchner, que pede sua volta, seguindo o exemplo de Perón: "será verdade que você se foi com a história/ ou será que ainda não despertamos/ e que com uma tocha nova em cada mão/ vais voltar."
É certo que o luto coletivo tem exceções em todos os casos mencionados. Quando Evita estava doente, anti-peronistas inscreveram a frase: "Viva o câncer" em muros da cidade. Também houve buzinaço e comemorações em bairros ricos de Buenos Aires no dia da morte de Kirchner.
Ainda assim, o símbolo do líder morto, transformado em mártir popular, tem um apelo muito grande, talvez devido a um peculiar fascínio que a morte exerce sobre os argentinos.
Hoje, enquanto Cristina evoca o ex-marido e até a própria Evita, Ricardo Alfonsín usa roupas parecidas com as do pai, imitando o seu bigode e o seu jeito de falar. É quase caricato, pois parece um homem antigo, transportado de um outro tempo.
O luto popular perdoa o defunto e conclama à unidade. Nada mais oportuno que explorá-lo em tempos de campanha.

Sylvia Colombo

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