Deu no Datafolha que o governo da presidente Dilma Rousseff conta com a aprovação de 49% dos brasileiros, que consideram sua gestão boa ou ótima. As travessuras de Antonio Palocci e as pressões inflacionárias não subtraíram pontos à popularidade da primeira mandatária, embora pareçam ter contribuído para piorar um pouco sua imagem pessoal e para deixar a opinião pública menos otimista em relação ao futuro da economia. De toda maneira, do ponto de vista da democracia, a administração da sucessora de Lula continua sendo um sucesso.
A pergunta que fica, então, é: podemos nos fiar no ponto de vista da democracia? Eu mesmo já dediquei algumas dezenas de colunas a louvar, ainda que não acriticamente, as virtudes do governo pelo povo. Hoje, a fim de dar elementos para que o leitor chegue a suas próprias conclusões, apresento ideias contrárias às minhas. Refiro-me ao livro "The Myth of the Rational Voter: Why Democracies Choose Bad Policies" (o mito do eleitor racional: por que democracias escolhem políticas públicas ruins) do sempre provocador economista e militante libertário Bryan Caplan.
A tese do autor é relativamente simples: democracias não dão muito certo porque elas entregam aos eleitores o que eles querem, e o que eles querem é frequentemente algo que os prejudica. Isso ocorre porque cidadãos de Estados democráticos, como todos os seres humanos, vêm de fábrica com uma série de preferências e vieses que praticamente os impelem a escolhas erradas.
Aqui é preciso antes de mais nada distinguir entre o erro aleatório e o sistemático. Erros aleatórios são aqueles que ocorrem quando, normalmente por ignorância, cada um atira para um lado. Já os sistemáticos são os produzidos pelo comportamento de manada, quando todos vão para o mesmo lado. As democracias modernas estão até certo ponto protegidas contra o primeiro tipo. Como mostraram os cientistas políticos Benjamin Page e Robert Shapiro, quando agregadas num coletivo, isto é, quando consideradas em conjunto, as respostas individuais instáveis e sem sentido das pessoas se tornam muito mais estáveis e significativas.
"Este é só um exemplo da lei dos números grandes. Sob as condições certas, a medida individual dos erros será independente e aleatória e tenderá a cancelar uma à outra. Erros em uma direção tenderão a anular erros na direção oposta", escrevem os especialistas em teoria da opinião pública. Trocando em miúdos: se 99% do eleitorado é desinformado e vota a esmo, essa grande massa ignara se autoanula, deixando a decisão para o 1% mais instruído. Não funciona só para a democracia. Se você quer saber o peso de um bezerro, pergunte para 787 pessoas, a maioria das quais não terá a menor ideia de qual número chutar, e tire a média. O jornalista James Surowiecki testou e a diferença entre as estimativas e o peso real foi de apenas uma libra. Quer mais? A resposta mais popular entre os espectadores de programas como "Quem Quer Ser um Milionário" está certa em 91% das vezes. No fundo, é o mesmo princípio utilizado pelas casas de apostas, que delegam ao mercado de jogadores a tarefa de estimar as probabilidades e definir o valor dos prêmios.
Caplan, é claro, faz uma descrição mais ácida do que chama de "milagre da agregação": "Misture 99 partes de loucura com uma parte de sabedoria para obter um composto tão bom quanto sabedoria não adulterada. Um eleitorado quase completamente ignorante toma a mesma decisão que um eleitorado totalmente informado é chumbo transformando-se em ouro!".
Apesar do tom irônico, Caplan não contesta esses achados estatísticos. Seu argumento é o de que o milagre só vale para erros aleatórios, não os sistemáticos. Aqui, como todos os envolvidos se deslocam para o mesmo ponto, o mecanismo de anulação dos opostos deixa de operar, e o agregado inteiro fica enviesado.
Mas que erros são esses que Caplan julga estar comprometendo a democracia? A principal preocupação do autor é com a economia. Para ele, nossos cérebros adaptados para a Idade da Pedra não conseguem entender os princípios mais elementares do funcionamento do mercado. Alguns exemplos. Em nossas cacholas, interesse público e cobiça privada são inconciliáveis, resultando no que Caplan chama de viés antimercado. É só com muito treino e repetidas broncas do professor de economia que os estudantes assimilam a ideia básica da mão invisível, capaz de transformar um vício privado (cobiça/busca pelo lucro) numa virtude pública (preços tão baixos quanto possível e inovação).
Nosso etnocentrismo inato nos faz desconfiar de produtos importados, imigrantes e fugir do déficit comercial como o diabo foge da cruz. É o viés antiestrangeiro. Entre os economistas ortodoxos, é quase um consenso, que importação, imigração e déficit não são males em si. Muito pelo contrário, cada um de nós deve agradecer aos céus o fato de manter uma balança altamente deficitária com o supermercado da esquina. A alternativa seria criar legumes e abater bois em casa um sacrifício de cerca de 100% de nosso tempo.
Também tendemos a ver o emprego e não a produção como fonte de riqueza. É o viés por empregos. Na verdade, países desenvolvidos só se industrializaram e se tornaram ricos porque milhões de pessoas perderam seus empregos no campo, sendo assim liberadas para a indústria, os serviços e, principalmente, para a inovação. Outra mania persistente é sempre achar que as condições econômicas estão ruins e vão piorar. É o viés pessimista. Na verdade, apesar de pequenas flutuações, o mundo como um todo nunca foi mais próspero do que é hoje.
E, se é tão certo que essa políticas escolhidas pela democracia são ruinosas (para economistas ultraliberais como Caplan o espaço para a dúvida é de menos de 1%), por que as pessoas continuam insistindo nelas? Para o autor, o problema está na forma como votamos. Embora haja uma corrente que defenda que o eleitor é puro egoísmo na hora de votar, pesquisas feitas nos EUA sugerem que o que ocorre é exatamente o contrário. Não é preciso ser um gênio da estatística para concluir que são irrisórias as chances de o meu ou o seu voto alterar o resultado do pleito. Assim, votar ou deixar de fazê-lo não faz praticamente a menor diferença (nos EUA, como na maioria dos países civilizados, o comparecimento às urnas não é obrigatório). Tende a zero, portanto, a chance de alguém se dar bem utilizando o sufrágio como ferramenta para obter benefícios pessoais. O resultado é que o momento do voto costuma ser um em que as pessoas se tornam especialmente altruístas, pensando mais no bem da coletividade do que no próprio bolso.
Ocorre que a virtual irrelevância de cada cédula singular também torna praticamente nulo o custo individual de votar "errado". Com isso, a cabine se torna o lugar onde o eleitor dá rédeas aos seus instintos mais básicos, que, evidentemente, incluem, os vieses cerebrais antimercadistas. O sujeito vota de uma forma que o faça sentir-se bem, sem pesar as consequências. Esse mecanismo também ajuda a explicar a eleição de Tiriricas, Eneas e vários outros Cacarecos nas proporcionais (nas majoritárias, o milagre da agregação inibe os desvios mais excêntricos).
O problema é que, embora o voto não traga consequências individuais, ele produz resultados em termos de políticas públicas. Uma boa receita para o político que queira ganhar eleições é prometer corrigir as distorções do mercado, de preferência opondo-se à ganância dos oligopólios, e criar barreiras comerciais para proteger empregos. Melhor do que apenas prometer é adotar algumas medidas com essas características. Só é preciso tomar um certo cuidado porque, se o homem público entregar tudo o que o povo pede, são grandes as chances de ele provocar uma crise econômica, que acabaria conspirando contra a reeleição (a performance passada é um dos critérios utilizados pelos eleitores).
Isso nos leva à questão central. Se a democracia é ruim, por que vamos substituí-la? Embora Winston Churchill tenha feito escola ao afirmar que a democracia é a pior forma de governo salvo todas as outras, Caplan vê na tirada um sofisma. Não há dúvida, diz o autor, de que democracias são preferíveis a ditaduras, só que regimes totalitários não são a única alternativa. Para este autor com fortes simpatias anarquistas, é possível e desejável reduzir o tamanho do Estado e delegar mais decisões aos mercados, que não padecem dos vieses que atrapalham o desenvolvimento econômico.
Caplan também sugere algumas medidas que tendem a reduzir os vieses do eleitorado. A mais óbvia é melhorar o grau de instrução da população. Quanto mais educado é um segmento social, mais ele pensa de forma semelhante a um economista. E essa talvez seja a única ideia consensual do livro. Os outros meios que ele propõe são francamente elitistas, como eliminar todas as campanhas par aumentar a participação do eleitorado (os mais pobres e menos instruídos são os que mais se abstêm) e até mesmo recriar alguns mecanismos de voto censitário, como o "plural voting", que vigorou no Reino Unido até 1948 e que dava peso maior ao sufrágio de pessoas com título universitário. Se você acha que é uma esquisitice de ingleses, é bom lembrar que, no Brasil, analfabetos estavam impedidos de ir às urnas até a Constituição de 1988.
Como eu disse no começo da coluna, não compro pelo valor de face todas as teorias de Caplan. Considero, por exemplo, que ele parte de um conceito meio simplista de democracia. A maioria dos regimes atuais conta com mecanismos até bem sofisticados para impedir que a vontade da maioria se sobreponha a direitos e garantias de indivíduos e empresas, preservando assim o mercado. Eu diria até que essa é uma das principais razões de existir do Poder Judiciário. Partidos também desempenham um papel aí, operando como filtros entre os desejos da massa e a ação política. Também tenho dúvidas de que ele seja tão antidemocrático quanto o título e a introdução do livro prometem. Em nenhum momento do livro ele propõe esquecer a democracia, que, em sua versão mais fraca, serve pelo menos para reduzir as chances de grupos rivais se engalfinharem numa disputa armada pelo poder, e simplesmente eliminar o governo ou entregá-lo a um bando de tecnocratas.
De qualquer forma, "The Myth of the Rational Voter" é uma obra que eu recomendo. É (ou deveria ser) sempre um prazer ler argumentos inteligentes a favor de teses que não abraçamos. Pelo menos em teoria, eles nos levariam a reelaborar e melhorar nossas próprias ideias.
Hélio Schwartsman
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